Contos

[Conto] O rei justo e benevolente

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Há muitos anos, em uma terra distante, havia um rei justo e benevolente. Herdeiro de um reino cujo trono nunca vira um monarca injusto, infiel ou desleal, todos os seus antepassados ficaram na história por serem homens e mulheres com um apurado senso de justiça. Os conflitos sempre eram resolvidos sob a luz da dignidade e da honra.

Nenhum súdito jamais levara uma questão ao rei sem sair com uma decisão coerente com os fatos, para o bem ou para mal. Punição para os culpados, absolvição para os inocentes, redenção para os arrependidos. O rei nunca tomara uma decisão errada.

Conta-se que certa vez uma mãe teve seu filho sequestrado por um ladrão viajante e, em desespero, ela saiu para pedir socorro ao rei, que imediatamente enviou seus melhores soldados em busca da criança, encontrando-a em companhia do sequestrador, que o utilizava para outros fins ilícitos em vilas vizinhas. O homem fora julgado e condenado, sendo, depois de cumprida sua pena, beneficiado com uma chance de ser um sujeito íntegro. O próprio rei, reconhecendo a transformação, nomeou-o seu camareiro pessoal, com acesso livre aos seus aposentos. O ex-condenado nunca mais voltou a cometer nenhum crime sequer.

Era um rei bom, amado e admirado.

Todos os anos o rei, a rainha e seus dois filhos ofereciam um banquete a integrantes de outros reinos. Era um dia de festa, de confraternização, de criação de laços políticos, sociais e às vezes até amorosos. Não era incomum donzelas serem pedidas em casamento nessa data e no ano seguinte surgirem com uma gestação em curso, radiantes e orgulhosas de suas uniões prósperas.

Os plebeus ansiavam por esse dia como se fosse o próprio Natal, pois o desfile de carruagens, belos vestidos, homens imponentes e cavalarias elegantes não era senão um presente para quebrar a monotonia de uma vida simples e sem muitos divertimentos. A cidade era enfeitada, as melhores frutas colhidas e oferecidas em cestas, as crianças, vestidas em suas melhores roupas, ficavam ansiosas para receberem acenos e apertos de mãos dos duques e condes. Com sorte, até mesmo um príncipe poderia aparecer e sorrir para elas!

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Naquele ano, por infortúnio, o cozinheiro do palácio teve um mau súbito e adoeceu dias antes da grande festa, sem perspectiva de melhoras. Foi um pandemônio. A rainha sucumbiu a uma crise de ansiedade e as criadas passavam o dia a abaná-la e a massagear seus pés para estimular o relaxamento dos músculos. Mas a preocupação ainda estava viva: quem iria cozinhar para os convidados?

Iniciou-se então um seletivo às pressas para contratar um novo cozinheiro e o escolhido foi o dono de uma barraca na feira da cidade que vendia os caldos mais famosos da região. A escolha fora unânime, assim que o rei e a rainha provaram do tempero levantaram os braços para o céu e respiraram aliviados pela possibilidade de salvar o jantar da Grande Festa. O cozinheiro, por sua vez, pediu encarecidamente a oportunidade de levar um aprendiz, um rapaz mais jovem que vinha aprendendo com ele a arte da culinária. O rei, justo e benevolente, concedeu o pedido e contratou ambos.

No dia mais importante do reino, o novo cozinheiro contou com a ajuda não só do aprendiz como de uma série de serviçais, que iam e vinham da cozinha a cada instante.

Uma chateação, contudo, o importunava. A quantidade de formigas e outras espécies de insetos infestava a cozinha e fazia o cozinheiro ora se importar com as comidas, ora em espantar os bichos para longe das panelas. Impaciente, pediu a um dos criados do castelo que providenciasse o extermínio daquelas criaturas o mais rápido possível ou os convidados correriam o risco de comer guisado com besouros!

Prontamente, o homem saiu pelo reino e voltou poucas horas depois com uma garrafa transparente contendo um líquido amarelado e viscoso. Entregou ao cozinheiro com a instrução de espalhar o conteúdo pelos cantos da parede e o cheiro, pouco perceptível ao olfato humano, logo afastaria todo tipo de inseto da cozinha. Antes que pudesse executar a dedetização e voltar para o trabalho de sua expertise, o cozinheiro fora solicitado pela rainha para os últimos ajustes do cardápio. Saindo da cozinha, esbarrou com o aprendiz e foi claro: “Mexa o caldeirão de risoto a cada cinco minutos, na terceira vez ponha uma medida de gordura, tire do fogo e deixe repousar para apuramento do sabor”. O jovem assentiu com a cabeça e tão logo chegara a hora da ação, apanhou o primeiro recipiente cujo conteúdo parecia o adequado e derramou dentro da panela na medida ordenada – totalmente alheio ao episódio dos insetos. Assim, sem que ninguém desse atenção à confusão, o jovem temperou o risoto com o remédio para formigas.

Mais tarde, a mesa do jantar foi posta e as refeições, servidas. O brilho dos talheres de prata disputava o ofuscamento dos olhares com as joias nos pescoços e pulsos das damas. A postura dos homens e mulheres fazia o ar do salão descer reto pelos corpos e traçar uma curva alinhada e sem desvios. Taças iam e voltavam dos lábios como gestos ensaiadas, as risadas eram contidas e nenhum convidado estava bêbado o bastante para alteá-la. O rei e a rainha estavam satisfeitos.

Assim que o risoto fora servido, vozes sussurraram elogios e o estalar de bocas e línguas refletia a boa recepção da comida. Mas não demorou muito para que os movimentos sinalizassem que algo estava errado.

Algumas mulheres começaram a sentir um embrulho no estômago, e os homens também, embora o disfarce não tenha durado muito tempo porque o desconforto logo virou uma pontada certeira nas entranhas. Os anfitriões não escaparam e em meia hora o jantar comportado e fino se transformou em um tumulto de gemidos, dores, poças de vômito, lágrimas e desespero.

Os guardas correram em urgência a buscar os médicos do palácio e até mesmo os curadeiros plebeus foram intimados a ajudar na maior desorganização sanitária vista desde que o rei era rei.

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Um dos duques, em idade avançada, não teve saúde o suficiente para aguentar a intoxicação e morreu ali mesmo, entre fluídos e pedras preciosas.

Dois dias se passaram até o rei estar recuperado o suficiente para apurar o acontecido. Toda a equipe da cozinha fora convocada para uma audiência particular e do trono o monarca lançou seu olhar de seriedade a uma dezena de semblantes apreensivos e cabisbaixos. O cozinheiro chefe tomou à frente e assumiu toda a culpa. Disse não saber explicar o acontecido, mas o jantar era de sua responsabilidade, por isso era justo ser ele o condenado.

O rei, cuja clareza de julgamento jamais falhara, não pensou duas vezes em concordar e nem mesmo achou necessário investigar mais afundo o acontecimento ou ouvir testemunhas. Com a firmeza na voz e a fúria contida, lançou o cozinheiro à prisão perpétua, pelo agravante de que sua comida não só adoecera todos os convidados como levara à morte um deles.

O aprendiz ouviu tudo com o corpo trêmulo e a boca seca. Depois do veredito voltou à cozinha e procurou apressado a garrafa que usara para temperar o risoto. Fora o único momento em que o cozinheiro estivera longe das panelas e pelo tempo que o acompanhava na culinária sabia que sua comida não carregava o menor traço de nocividade. Talvez o erro fosse seu.

O remédio de formigas – outrora confundido com gordura – perdeu-se na cozinha durante a confusão do jantar e o aprendiz levou dois dias e meio para encontrá-lo de volta. Pediu que um dos criados mais experientes dissesse do que se tratava aquele líquido viscoso e o engano fora esclarecido num instante. Sem demoras, solicitou uma reunião de urgência com o rei e prostrou-se aos seus pés, entre choros e lágrimas, a explicar o acontecido e a pedir perdão e clemência pelo preso injustamente.

O rei não disse uma palavra enquanto o servo balbuciava em atropelos seu discurso, tampouco mexeu um só dedo da mão ou do pé ao pensar em toda a situação ocorrida debaixo de seu grande nariz generoso e justo. Com um movimento das mãos, como se enxotasse uma galinha, mandou o aprendiz ir embora e com a mesma mão fez um gesto ordenando um de seus conselheiros se aproximar.

“O que faremos?”, perguntou o rei.

“Não foi culpa do cozinheiro, Majestade. Tampouco do garoto. É nítido que sua falta de experiência fê-lo cometer um erro, mas não foi proposital”.

O rei coçou a barba e manteve os dedos ao redor do queixo e os olhos vazios em evidente reflexão sobre o ocorrido.

“Na verdade… se me permite…”, o conselheiro, com a voz mansa, arriscou falar sem ser solicitado, “Não foi de bom tom Vossa Majestade ter dado a sentença sem uma investigação prévia”, ele disse e logo abaixou o olhar.

“O que quer dizer?”, o rei subiu alguns tons na sua voz rouca, “Eu sou o rei mais justo dessa região. Como pode dizer que cometi um erro?”

“Perdão, Majestade, sou um tolo. Quero dizer apenas que todos estamos à mercê de falhas. O senhor não tinha como ter certeza e neste caso específico não houve um culpado. Perdão, senhor, se me permite um conselho, em toda minha miserabilidade, Vossa Majestade deveria soltar o preso e pedir desculpas publicamente para que a honra dele seja restituída. Ele não fez nada”. – ele fez um pausa para se certificar de que ainda era ouvido – “Mas sua vontade é soberana. Vossa Majestade é justo.”, ele disse, se afastando do trono e deixando o rei e seus bufos no mesmo lugar.

Alguns dias se passaram e os habitantes do reino não souberam da confusão que se sucedeu depois da prisão do cozinheiro e nem mesmo o aprendiz resolvera tomar algum partido além de passar os dias e as noites atormentado pela ausência definitiva de uma resolução e a condenação de um homem inocente.

Finalmente, quando o assunto parecia esquecido, um burburinho se formou na feira da cidade e o aprendiz, que dera seguimento às suas atividades sob mando do cozinheiro anterior, infiltrou-se nos grupos até saber o que tinha acontecido para tamanho alvoroço.

“O cozinheiro está morto!”

“Seu corpo fora jogado no rio!”

“Ele fugiu da prisão?”

“Teve o que merecia, afinal!”

O aprendiz, confuso, nada entendeu, e voltou para o castelo transtornado e aflito. A culpa o assolava agora mais do que nunca e a inexplicabilidade dos acontecimentos dera um nó na sua mente que sua cabeça rodopiava sem sair de cima do pescoço. Naquele mesmo dia, o rei fez um pronunciamento público:

“Chegou ao meu conhecimento uma terrível fatalidade. Um preso de nosso reino fora encontrado flutuando nas margens do rio, um acontecimento terrível e lastimável para nossa história, que jamais fora manchada por tamanho ato de crueldade. Dessa forma, embora minha política seja baseada na justiça e benevolência, deixo minhas sinceras condolências à família do condenado. Tínhamos esperança na sua redenção, mas tudo indica que ele viu na fuga uma alternativa para a liberdade. Liberdade essa que foi um engano, uma ilusão. As autoridades responsáveis farão seu trabalho para descobrir o culpado, pois não importa de quem se tira a vida, é um crime. E crimes devem ser solucionados e punidos”.

Toda a corte aplaudiu e reverenciou Sua Majestade. Aos gritos de “Rei justo!”, “Rei bom!”, balançaram lenços, acenaram, veneraram. Alguém disse “Como é bom ter um rei que nunca erra!”, e do lado um companheiro concordou. Eles se sentiam seguros. Eles estavam em boas mãos.

Dias depois o conselheiro morreu de causas desconhecidas. A garrafa de veneno para insetos boiou dias e dias no rio, vazia. Mas ninguém se deu conta.

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