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Contos

Sabonetes

Desde criança, a avó dizia que aquela casa seria dele. Uma casa grande, afastada da cidade, com trejeitos coloniais, paredes centenárias e colunas que viram gerações subirem as escadas e atravessarem a varanda.

Quando tomou posse, percebeu que os corredores conservavam o cheiro da avó até o quarto que por toda a vida foi dela. A cômoda de cor escura prostrada no lado esquerdo guardava perfumes, colares e uma foto da família em um porta-retrato. A poltrona de leitura simbolizava um privilégio, os tapetes coloridos e bordados foram presentes de uma prima distante e as pantufas ainda estavam ali, na entrada do banheiro, de onde ela saía com uma toalha na cabeça e agradecia a Deus pelo banho quente.

Cada item, grande ou pequeno, caro ou barato, contava um pedaço da história daquela avó e ele decidiu que contaria a sua naquele cômodo também. Trocou os móveis de lugar, abriu espaço, alojou o material de trabalho e transformou em um ateliê, ateliê Vó Nilde, como carinhosamente passou a chamar.

Os cavaletes ficavam próximos às janelas e a luz que batia pela manhã o deixava empolgado, animado e convicto de que suas melhores e maiores pinturas sairiam dali, com a aura da avó o envolvendo.

Mas assim como um quarto fechado acumula pó, mofo e insetos, uma mente acomodada é corroída pelo tempo e se atrofia até endurecer. O artista quando se vale apenas da inspiração, como se fosse ela o único motor, está sujeito a longos dias de ócio e improdutividade. Assim era ele, que esperava ser tocado pela sensibilidade da casa para entrar no ateliê e retirar os pinceis do estojo.

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Pincelava algumas cores na tela e não ia até o fim, iniciava uma outra e descansava, deixava para depois, dizia a si mesmo que não era seu melhor dia. Olhava para o louceiro e parecia esperar que aquela xícara do século passado o tomasse pela mão e o fizesse pintar. Sim, estava rodeado de beleza, mas nem sempre sabia fazer proveito dela.

Da varanda via um campo verde a perder de vista. A luz do sol batia nas montanhas ao fundo e ele as reproduzia com entusiasmo. Pintava, pintava, pintava, como eram bonitos os dias de céu azul! Mas às vezes chove e quando chove a gente deve contemplar. Ele não. Trancava-se no outro quarto e resmungava. Que dia horrível para trabalhar, que dia frio, que lama feia nos meus sapatos. No inverno, não abriu o ateliê uma única vez, na primavera sim porque as flores eram devidamente bonitas, bonitas como ele esperava, bonitas para inspirar pintores. No outono, não via graça no marrom da natureza. Não gostava de cores escuras porque as achava sombrias. A casa da avó sempre foi muito clara, com exceção da cômoda, talvez se pintasse de branco…

Quando se achava murcho de inspiração, quando a Musa o abandonava, andava pela casa a achar algum item que o fizesse florescer, e tinha que ser algo perfeito, apenas a perfeição importava. Não queria saber de azulejos rachados, cadeiras pensas e tampouco do rádio quebrado que um dia foi do avô. Ele não sabia que só havia aquele modelo de rádio em todo o país, uma verdadeira antiguidade embelezada pelo tempo e pela história, mas estava quebrado e quebrado não servia – só lhe interessava o comprovadamente belo.

Às vezes, tomava a foto da avó nas mãos e suplicava por uma benção artística, como se rezasse para a santa dos pintores, e tudo que recebia de volta era o sorriso estático da vó Nilde, que nada tinha a dizer. Começou a achar que a magia da casa havia chegado ao fim e que tudo não passou de uma fantasia de criança. Na infância, tudo era inspirador e ele se deitava embaixo das árvores e desenhava tudo que via. Os pássaros amarelos, os gafanhotos verdes, as borboletas azuis e até as minhocas marrons e sujas de terras eram bons o bastante para serem reproduzidos. Ele se lembrou de que achava bonito o fogo que brotava do fogão à lenha – nada daquilo existia mais. Ele procurava, procurava, procurava, e não dava vontade de pintar sobre nada. De repente, tudo ficou feio e comum. Onde está o extraordinário? Cadê os amanheceres alaranjados, as nuvens estupidamente brancas e as roupas de cama novas onde dormi quando criança? Por que há essa parede descascada na cozinha, por que o telhado é tão sujo e o lodo se acumula no quintal? Não posso pintar isso, é tudo tão feio…

Então se desfez da casa. Vendeu-a para o homem que fazia sabonetes. O homem derrubou a casa e construiu uma fábrica no lugar. Um dia, ele viu os sabonetes na prateleira do supermercado e achou as embalagens feias – ele poderia ter pintado algo muito melhor.

Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa