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    [Conto] Como nossos pais

    Houve uma época da minha vida em que eu tinha sonhos inusitados. A primeira vez aconteceu naquele verão em que viajamos para o litoral. Eu morava a trezentos quilômetros da cidade dos meus pais e, sempre que podia, visitava-os nos feriados. Era carnaval, e escolhemos uma pousada simpática, longe dos blocos de rua e perto do barulho das ondas. Sentados na areia, eu conversava com meu pai quando minha mãe voltou de algum lugar com cinco pequenas e bonitas conchas nas mãos, animada e se achando sortuda por ter encontrado não conchas quaisquer, mas conchas peroladas, com listras marrons e uma ou outra de um laranja brilhante. Eram realmente lindas,…

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    Sabonetes

    Desde criança, a avó dizia que aquela casa seria dele. Uma casa grande, afastada da cidade, com trejeitos coloniais, paredes centenárias e colunas que viram gerações subirem as escadas e atravessarem a varanda. Quando tomou posse, percebeu que os corredores conservavam o cheiro da avó até o quarto que por toda a vida foi dela. A cômoda de cor escura prostrada no lado esquerdo guardava perfumes, colares e uma foto da família em um porta-retrato. A poltrona de leitura simbolizava um privilégio, os tapetes coloridos e bordados foram presentes de uma prima distante e as pantufas ainda estavam ali, na entrada do banheiro, de onde ela saía com uma toalha…

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    [Conto] Amanhã talvez

    No escuro do teatro, enquanto um ator declamava um poema, ele segurava a mão dela com leveza sem imaginar que o pensamento dela havia voado para longe dali. Ao fim do espetáculo, ele seguiu com os comentários. Elogiou a atuação da companhia, mas ressaltou que na gestão do diretor anterior eles eram ainda melhores, mais concentrados e com peças mais inteligentes. Ela não disse nada, não sabia quem era o diretor anterior e tampouco se o grupo era melhor ou pior. A noite havia esfriado e ao dobrar a esquina ele ofereceu um casaco e ela respondeu algo que ele não havia perguntado. Ela disse que não gostaria mais de…

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    Todos os dias bons

    Minha irmã Ellen sempre foi muito organizada. Quando criança, eu não me preocupava em memorizar o dia da aula de Geografia porque ela colava um papel sulfite na porta da geladeira com todos os nossos afazeres. Segunda-feira, aula de inglês, quinta-feira, uniforme de Educação Física, sábado, catequese. Sempre foi um prazer pessoal dela se dedicar a deixar tudo em ordem. Liguei para Ellen na sexta-feira e perguntei se gostaria de jantar comigo no restaurante novo do bairro, um mexicano com luzes coloridas e música sertaneja.  – Hoje é dia do futebol do Érico, ele gosta que eu vá. – Nenhuma esposa vai assistir a essas coisas, não é o dia…

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    [ Conto ] Um dezembro a mais

    Naquele ano, ele apareceu na porta da casa dela com um buquê de oito gérberas e um livro de poemas. Na porta da casa havia uma guirlanda grande e desproporcional, ele observou, enquanto ela não atendia à campainha. Ele estava nervoso, namoravam há exato um mês e era Natal. Ele também levou um vinho para os pais dela, um vinho caro comprado com as economias de seis meses. Ela recebeu todos os presentes com o entusiasmo característico de quem está apaixonada. Era alérgica a gérberas, não gostava de poema e nenhum dos pais consumia bebida alcoólica, mas mesmo assim foi uma noite muito especial, ela o amava. No ano seguinte,…

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    [ Conto ] Arquivo

    O pacote chegou em uma sexta-feira. Quando ele entrou em casa, lá estava uma caixa pequena, do tamanho de um celular, em cima do aparador. – O que é? – ela perguntou. – Um brinquedo novo. – Outro jogo? – ela deixou transparecer uma ligeira irritação. – Mais ou menos – e ele estava ansioso demais para se importar com a reação dela. Edgar sentou-se no sofá enquanto abria o volume. Dentro havia um par de fones de ouvido e uma pulseira digital, ambos na cor branca. Ele leu ligeiramente as instruções, pôs a pulseira no pulso, os fones no ouvido, e ouviu uma voz suave e feminina: Seja bem-vindo…

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    [Conto] O cliente da mesa cinco

    A gerente entrou na cozinha e imediatamente todos adquiriram uma posição de prontidão. Ela olhou o grupo de dez pessoas, um por um, e eles se entreolharam entre si, ansiosos. – Por favor, eu não, eu não, eu não – Valmir disse, baixinho, enquanto prendia o avental ao corpo. – Valmir e Brenda, a mesa cinco hoje é com vocês – e saiu. No fundo do grupo, Valmir bufou e fez uma careta enquanto o restante dos garçons se espalhava pela cozinha.  – Isso é culpa sua, você me dá azar – ele disse à Brenda, que achou graça. – Pense pelo lado positivo, mesa grande é igual à gorjeta…

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    [Conto] Em outra vida, quando formos gatos

    Às sete horas da manhã eu já deveria estar pronto para sair. Normalmente, Tobias me acorda antes disso, mas não dá para culpá-lo agora. “Tobias! Cadê você, seu gato sem vergonha?” – chamo por ele enquanto calço as meias e os sapatos – “Não está com fome, hein? Será que você morreu?” – fiz piada e imediatamente me assustei ao pensar no meu gato morto. Ligeiramente frustrado pela ideia de tomar café na padaria em frente ao trabalho – a padaria com seus ovos mexidos cheios de gordura e o pão dormido -, saí em direção à cozinha na esperança de encontrar uma fruta perdida na geladeira e qual não…

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    [Conto] Acendedora de Lampiões

    Uma vez minha avó me disse: “Se não procurar acordar pra vida, tu vai viver de acender lampião pros outros”. Ela viu numa novela e achou curioso uma pessoa cuja função era sair de poste em poste iluminando a rua. Achou um pouco triste também. Disse-me isso quando eu tinha lá meus dezesseis anos e voltei da rua entrando sorrateira pela porta da cozinha.  “Cadê tua irmã, hein?”, mamãe perguntou, pegando-me desprevenida.  “Sei não”, menti. “Não sabe ou não quer dizer?? Eu quero é saber de Marcinha se agarrando com o filho de Tonho. Vocês acham que eu não sei das coisas aqui dentro de casa. Sem vergonhice dessa” –…

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    [ Conto ] Depois do horizonte não dói

    Quando a moeda caiu no mar estavam os dois dentro de uma canoa virada para o horizonte. Ele ainda tentou apanhá-la de volta, mas muito rapidamente o metal rodopiou entre as pequenas ondas e afundou.“Era a última”.“Tudo bem”.“Compro outra para você na volta”.“Não importa, é só uma moeda”.“Uma moeda personalizada”, ele tentou parecer animado. “Deveríamos ter guardado todas na mochila. Foram caindo uma por uma, que coisa”.“Precisamos voltar, vai anoitecer muito em breve”.“Temos tempo”.Ele fixou o olhar nela, mas ela se manteve olhando para longe. O balanço calmo das ondas fazia os dois subirem e descerem lentamente, quase flutuando.“Olhe para mim”.“Eu consigo olhar para o sol e não chorar, não…

Sabryna Rosa