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Contos

[Conto] Estranho são os outros – Sabryna Rosa

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Havia uns bons anos que Jorge e Magnífico eram vizinhos. O primeiro, viúvo, filhos morando fora da cidade, o segundo, um solteirão de longa viagem. Moravam lado a lado, com a distância de um jardim e uma cerca baixa construída por Jorge mais a fim de decoração do que de separação de terreno.

Os dois tinham uma relação amigável, mas não íntima. Encontravam-se vez ou outra pela calçada, pela padaria ou no mercado do bairro. Como vai? Como vai? A carne subiu de novo, não é?, essas frivolidades.

Um dia, passando em frente a casa de Magnífico, Jorge observou todas as cortinas fechadas, algo incomum para um homem, ele acreditava, cujo frescor do vento entrando pelas janelas, principalmente no verão, era um atrativo. Para falar a verdade, ele não tinha muita certeza sobre essa convicção, uma vez que o vizinho nunca lhe afirmara nada do tipo, mas, pela longa observação despretensiosa, ele nunca antes vira a casa fechada assim.

Deu de ombros e continuou a vida.

O fato curioso permaneceu. Janelas fechadas, vidros pouco abertos, um Magnífico visto com pouca frequência pelo bairro. Jorge tentou inserir o assunto em conversas triviais com outros vizinhos, mas ninguém parecia se importar muito com a situação das janelas de Magnífico.

Meses se passaram e a situação cada vez mais estranha. Jorge passava horas espiando de suas próprias janelas, onde o ângulo era favorável, tentando encontrar alguma explicação para o completo sumiço de Magnífico e o aparente abandono de sua casa. Certa vez decidiu ir até lá, bater à porta e oferecer uma cerveja só para conferir se estava tudo bem, mas desistiu assim que chegou na soleira. Eu não tenho intimidade para isso, ele nem deve estar na cidade. Mas as sombras que Jorge via através das cortinas diziam o contrário. Aquela silhueta era sim de Magnífico. Sua curiosidade se acendeu.

Ao contrário do vizinho, Jorge ainda não chegara em sua aposentadoria e mantinha uma pequena oficina de marcenaria próximo dali. A cada ida e volta do trabalho, diminuía o passo ao passar pela calçada de Magnífico e tentava, em vão, descobrir alguma coisa. Às vezes, a observação se estendia além do normal e alguém o interpelava pela rua para perguntar se havia algum problema. O camarada aí está meio sumido, o que acha?, ele perguntava, com um sorrisinho disfarçado e nervoso. As pessoas não davam muita atenção.

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A importância que Jorge dava ao fato não era exatamente uma preocupação genuína, mas o puro atiçamento de imaginação que ele gerava. Em sua cabeça diversas narrativas explicativas já haviam sido formuladas, algumas com a lógica perfeita, outras sem pé nem cabeça. Ele dormia e acordava pensando no que Magnífico fazia de tão interessante, ilícito ou imoral atrás daquelas janelas fechadas o dia inteiro.

Assim, bolou um plano. Veria com seus próprios olhos na primeira oportunidade que tivesse. Nada muito invasivo, apenas a satisfação de sua curiosidade.

Tirou uma pequena licença de uma semana do seu trabalho e pôs-se de vigia na janela de sua casa quase vinte e quatro horas por dia. Ele precisa sair uma hora ou outra para comprar comida e nessa hora eu entro pelos fundos, dou uma olhada e volto.

Demorou dois dias até que Magnífico saísse de casa. Era uma manhã nublada e a temperatura abaixara alguns poucos graus. Desconfiado, olhou para um lado, para o outro, e para o céu. Refletiu por um instante, talvez ponderando se deveria levar ou não o guarda-chuva. Não levou. Trancou a porta e saiu com pressa.

É agora.

Jorge pulou a cerca que ele mesmo construíra e não se importou com a atitude juvenil de transpôr barreiras privadas para fazer uma espécie de traquinagem. No quintal da casa do vizinho deu mais uma olhada ao redor para se certificar de que ninguém estava por perto. Limpo.

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As janelas dos fundos, assim como as da frente, se mantinham com os vidros e cortinas fechadas. A porta, por sua vez, foi encontrada sem trancas.

Deixar a porta tão fácil assim? Jorge estranhou.

Girou a maçaneta e a fechadura fez um clique. Ele a empurrou alguns centímetros e sentiu um cheiro forte de algo que não soube identificar de imediato o que era. Mas com certeza se misturava com mofo e… urina?

Jorge deu dois passos para a frente e mergulhou na casa mal iluminada. Passou pela cozinha e viu incontáveis bolinhas marrons espalhadas pelo chão. Ele se abaixou e tomou uma entre os dedos. Cheirou. Ração?

Jorge não era um homem dado a animais domésticos, mas sem dúvidas todo aqueles grãos jogados no chão da cozinha era restos de algum saco de ração. Mas desde quando Magnífico tinha gatos ou cachorros em casa?

Avançando um pouco mais na casa do vizinho, Jorge chegou em um espaço amplo cuja curva daria para a sala, caso ele tivesse caminhado um pouco mais. Em vez disso, topou com dezenas de olhinhos fitando-o, flagrando-o e acusando-o de um crime que até então só ele sabia que havia cometido.

Na sala de Magnífico, cerca de cinquenta gatos, de várias cores e tamanhos, aglomeraram-se em um grupo silencioso e acusatório. Alguns deitados, outros sentados, três ou quatro de pé, e absolutamente todos encarando Jorge com uma profunda incógnita na testa. Um deles manifestou o primeiro miado e dois o seguiram. O invasor permaneceu onde estava, atônito, absorvendo a cena que se revelou a sua frente.

Então esse era o segredo de Magnífico? Ter transformado sua casa em um abrigo para gatos de rua? E por que tanto mistério?

Olhando melhor o ambiente, Jorge percebeu que não era mais uma casa comum. Os móveis haviam sido afastados e em todo canto uma caixa de areia ou cumbuca de água podia ser encontrada. Num canto, quilos e mais quilos de sacos de ração empilhados e a quantidade de pelo espalhado pela casa faria qualquer alérgico considerar ali o próprio inferno.

Passada a curiosidade dos gatos com a visita inesperada, eles se dispersaram. Miaram entre si, lamberam as patinhas, deram uma passeada pelo parapeito da janela e se acomodaram pelo espaço que afinal era deles. Jorge sacudiu a cabeça, incrédulo por ter perdido tempo com tamanha bobagem. Contudo, um estalo se deu em sua mente. Nada daquilo era saudável. Nem para Magnífico e nem para a vizinhança. Quem poderia imaginar os tipos de doenças que aqueles gatos carregaram para dentro de casa e quantos deles sairiam dali para infestar as casas vizinhas? Jorge começou a se preocupar. Se Magnífico escondia sua nova ocupação – cuidador de gatos sem donos – era porque coisa boa ele não estava fazendo.

Forçando passagem entre os bichanos, às vezes chutando um e outro que teimavam em sair da frente, Jorge fez o caminho de volta e retornou para casa. Assim que pulou a cerca, tomou o celular do bolso e ligou para o centro de zoonose da cidade para fazer a denúncia. Um vizinho estava criando uma infinidade de gatos vira-latas sem qualquer higiene e preparo. Ele vira até mesmo uns feridos – embora não pudesse dar certeza, afinal eram muitos – e aquilo estava pondo todos em risco.

Quando Magnífico voltara, algumas horas depois, deixou as sacolas do supermercado caírem no chão ao perceber que um carro da prefeitura o aguardava na porta de casa. Tentou se explicar, entre lágrimas, e insistiu que adorava os bichinhos e cuidava muito bem deles. Ainda não tivera como vacinar todos, mas faria assim que possível. Justificou o mistério com o medo de os vizinhos acabarem entendendo mal, o que acabou acontecendo.

A prefeitura levou todos os gatos da casa de Magnífico. Uma segunda viatura foi chamada para dar reforço na quantidade de gaiolas e uma delas foi danificada no transporte. O agente a jogou na primeira lixeira que viu na frente, a de Jorge, que observava tudo da brecha das cortinas de sua casa. Tivera uma certa compaixão pelo vizinho, choroso, vendo seus animaizinhos indo para longe, mas por outro lado se preenchera com a sensação de dever cumprido, de cidadão cumpridor dos seus deveres. Talvez Magnífico não estivesse em posse de suas faculdades mentais e tenha se tornado uma daquelas pessoas estranhas que ocupam a vida com hábitos esquisitos.

Ao ver o quase amigo entrar em casa, cabisbaixo, Jorge foi até a rua e observou a gaiola que fora jogada na lixeira. Era uma caixa de metal gradeada com um dos lados amassados e vários ferros partidos. Não servia para muita coisa. Ele a apanhou, conferindo todos os lados, e levou para dentro de casa. Na sala de estar, olhou para um lado, para o outro, coçou a parte superior da cabeça e decidiu pôr a gaiola dentro do banheiro, junto com o rádio velho que apanhara na semana passada, a TV de tubo, a sacola de sapatos femininos, as bolsas de couro e um punhado de canos de PVC amarrados com um barbante. A gaiola coube exatamente embaixo da pia, ao lado do filtro de barro quebrado e encontrado na rua há dois anos.

Ele voltou para a janela onde estivera observando a cena mais cedo e fechou a cortina. Sem querer, esbarrou na velha máquina de lavar roupas sem motor e sem tampa. Era uma dos cinco que ele tinha guardada no corredor. Nenhuma funcionava. Isso o fez se lembrar do fogão que aquela senhora da rua de trás deixara na calçada de casa para o ferro velho apanhar. Será que ainda estava lá? Não, depois de tantos dias, certamente não, ele se lamentou. Uma pena. Se afastasse a pilha de revista dos anos 2000 um pouco mais para direita, e ao trocar de lugar a porta daquele Gol 1994, o espaço seria ideal para o fogão.

Pensou em Jorge mais uma vez. Lamentável ter chegado àquele ponto. Não poderia imaginar que seu velho vizinho fosse dado a isso. Encher a casa de gatos! Onde já se viu?

As pessoas são estranhas, disse, ao se embrenhar na montanha de lixo acumulada entre a cozinha e a porta do seu quarto.

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Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa