Contos

Petrúcio da Casa Azul – Sabryna Rosa

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Essa é uma história simples de dois meninos da vizinhança. Apenas um causo que eu peço licença para contar enquanto tomo meu chá olhando o tempo passar. Eram dois garotos. Um morava em uma casa de fachada rosa, o outro na casa azul. O da fachada azul era eu. Eu e Petrúcio (esse não é o seu nome verdadeiro, mas vamos nos contentar com este), nos conhecemos por volta dos doze anos de idade, quando eu, meu pai e minha mãe nos mudamos para aquela rua.

Esse evento, a mudança, foi temporário. Meu pai tinha acabado de perder o emprego e minha mãe nos sustentava com seu magro salário de vendedora em uma loja de importados no centro. Antes disso, ela tinha sua própria loja de importados, mas um incêndio acabou com tudo. Por isso nos mudamos para uma casa menor, em um bairro maior, mais afastado, mais sujo e mais pobre. Eu confesso que não gostava daquilo. Gostava de quando nossa casa ficava no bairro perto do parque e podíamos sair no fim da tarde para dar um passeio. Na nova casa, não era muito seguro para isso, e também não tínhamos onde passear. Para onde quer que eu olhasse só via casas amontadas, ruas estreitas, cachorros pulguentos e um fedor constante de esgoto. Aliás, foi ali que eu soube como identificar cheiro de esgoto.

Eu também mudei de escola. Passamos a morar muito longe do antigo colégio e eu fui transferido para um público. Eu ouvia histórias horríveis sobre a escola pública. Sobre a violência, as cadeiras quebradas, ventiladores barulhentos e goteiras. No primeiro dia de aula chorei antes mesmo de chegar lá. E ninguém podia me levar. Meu pai saiu cedo para procurar emprego e antes disso minha mãe já tinha tomado o ônibus para trabalhar. Estava escuro ainda, mas ela deixou café e um pão com manteiga para mim. Não era exatamente manteiga, era margarina, mas eu continuava a imaginar que era manteiga.

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No caminho para a escola eu pensei em não ir. Pensei em me esconder em algum lugar todos os dias e nunca ter que chegar lá, nunca encontrar os meninos que certamente bateriam em mim ou jogariam minhas coisas na privada. Nunca correr o risco de cair da cadeira quebrada e nunca molhar o uniforme com a goteira. Então eu sentei na calçada e fiquei olhando os outros garotos da vizinhança andarem em grupo. Eles riam, davam petelecos nas cabeças uns dos outros, brincavam de pega-pega no meio da rua. Alguns tinham tênis velhos e as mochilas puídas. Alguns nem tinham mochila, levavam um caderno na mão e as canetas nos bolsos. Outros estavam de chinelo e a barra da calça ia arrastando pelo chão.

Foi nessa hora que Petrúcio se aproximou. Perguntou se eu sabia o caminho e eu disse que sim. Ele fazia parte dos garotos sem tênis e sem mochila, eu reparei. Ele me alertou que eu poderia chegar atrasado se continuasse ali e então me estendeu a mão em um convite para a escola. Eu não queria ir, não queria mesmo, mas era tímido demais até para recusar.

A escola até que não era tão ruim. Era colorida, com cartazes de boas-vindas feitos em cartolinas brancas. As paredes dos corredores era coberta com um azulejo branco quadriculado e o chão estava encardido e bem arranhado. Tinha murais verdes por toda parte. As salas não tinham portas, eu logo vi, e as cadeiras eram de uma madeira escura e velha, a maioria delas rabiscadas.

Eu e Petrúcio erámos da mesma turma e ele era um cara popular. No intervalo das aulas, tínhamos direito a um lanche que poderia ser desde mingau de milho verde a um arroz com macarrão e salsicha. Eu tinha nojo de tudo, mas minha mãe dissera que nem todos os dias eu poderia levar meu próprio lanche, então era melhor eu me acostumar com o que tinha.

No primeiro dia, fui convidado por Petrúcio a me sentar perto de sua turma para comer e fui apresentado aos demais como o menino novo da sua rua. Eu apenas acenei de longe. Depois que fomos servidos eu beliscava aqui e ali, até um deles dizer “Ei! Não vai comer? Se não quiser, me dá!”. Lembro o quanto aquilo me chocou. Fiquei me perguntando se em algum momento eles atacavam as comidas uns dos outros ou iam de cadeira em cadeira pedir as sobras dos colegas como cachorros famintos. Foi tão inesperado que não soube o que dizer e inventei que precisava ir ao banheiro. Quando voltei, meu prato estava intacto, para minha surpresa. Mas eu já havia perdido totalmente a fome.

Com o tempo, as coisas ficaram mais fáceis e minha amizade com Petrúcio ajudou. Eu confesso que no começo não o achava uma boa companhia para mim e pensava que ele não entenderia os meus assuntos preferidos, como filmes e revistas em quadrinhos. Não sabia se ele tinha televisão em casa ou se seu nível de leitura era bom o bastante para interpretar textos. Mesmo assim, em um gesto de generosidade incentivado pela minha mãe, emprestei uma de minhas revistas para ele – uma das mais velhas, pois tive medo de que não fosse devolvida – e no dia seguinte ele me devolveu perguntando se eu poderia emprestar outra. Aos poucos, fui emprestando toda minha coleção e já podíamos conversar sobre as sagas dos heróis e imaginar cenas alternativas. Petrúcio tinha uma imaginação incrível, preciso admitir.

Um dia, ele me convidou para ir até sua casa. Morávamos um do lado do outro e eu já tinha reparado na sua sala de estar com três cadeiras de plástico, chão sem piso e paredes descobertas de tinta. Quando entrei, vi que entre um cômodo e outro cortinas de um tecido estampado ocupavam o lugar das portas e a casa tinha cheiro de mofo. Eu não passei da sala, embora ele tivesse me convidado para brincar no quarto que ele dividia com os outros três irmãos. Na verdade, fui até a cozinha, onde comi, por pura educação, um pão com ovo mexido e suco de goiaba oferecido pela sua mãe. Ele me contou que ela vendia doces nos pontos de ônibus e o dono de uma padaria costumava dar um saco de pão no fim do dia, quando ela voltava para casa. Na maioria das vezes, era pão do dia anterior, mas às vezes davam sorte e ganhavam pão quentinho. Eu estava lá num dia de sorte.

Para conter o embaraço que eu sentia na casa de Petrúcio, passei a convidá-los mais vezes para minha casa. Nós brincávamos com minhas espadas, meus carros automatizados e meus jogos de tabuleiro. Eu o ensinei a jogar xadrez, mas depois me arrependi porque sempre perdia e nunca gostei de perder. Nessa época, meu pai ainda não tinha arrumado um novo emprego, mas minha mãe havia sido promovida, então eu voltei a comprar mais revistas em quadrinhos e levar lanche para a escola todos os dias. Foi um verdadeiro alívio. Na minha casa, Petrúcio comia goiabada, geléia de frutas e biscoitos recheados. Uma vez comemos chocolates e foi uma festa. Eu me sentia bem, sentia como se estivesse fazendo uma boa ação e proporcionando bons alimentos para alguém que estava em uma situação pior do que eu.

Nós dois tivemos uma boa amizade. Na escola, na rua, lendo revistinhas e jogando xadrez. Mas, como eu disse, morar ali foi um evento temporário. No fim do ano, meu pai foi readmitido no seu emprego de corretor e minha mãe recebeu um bom dinheiro do seguro por causa do incêndio, o que lhe deu a chance de reabrir a loja. Já tínhamos data para voltar para a antiga casa e a antiga vida, mas antes disso algo aconteceu.

Minha mãe não me deixava ficar até tarde da noite com as brincadeiras de rua, diferente das outras mães, e me deixava bem claro que eu não poderia ir muito longe. Naquele dia, eu e Petrúcio nos afastamos um pouco demais, e eu estava com medo. As ruas eram escuras e muita gente estranha passava por nós. O que me deixava um pouco mais seguro era o fato de Petrúcio ser muito conhecido no bairro. Estávamos indo rumo a uma quadra esportiva, onde um grupo de meninos estaria disputando uma pelada de fim de semana e Petrúcio me garantiu que era muito divertido. Eu só não imaginava que o lugar era tão longe, e depois de tanto andar pedi para voltar para casa pois estaria encrencado se minha mãe soubesse por onde eu estava andando. Petrúcio insistiu para eu ficar e garantiu que já estávamos chegando, mas àquela altura eu já não tinha tanta timidez para aceitar à força coisas que não queria fazer. Petrúcio reclamou bastante, mas acabou voltando comigo para casa. Eu, tentando compensar a chateação, disse que no dia seguinte poderíamos jogar xadrez o dia todo se ele quisesse ou eu poderia dar um dos chocolates que ele gostava, eu tinha bastante em casa. Ele não quis, queria mesmo era assistir uma pelada. Então fomos em silêncio, ele irritado comigo, eu irritado com ele. Que diabos tinha de tão divertido num jogo de futebol tarde da noite? Eu certamente levaria bronca por ainda não estar em casa àquela hora.

Então, na esquina de casa, eu caí. Pisei em algo mole e meu pé deslizou para a frente me fazendo cair de costas e esfregar meu corpo na lama. Antes que eu pudesse reagir, já estava no chão. E antes que eu pudesse me levantar, percebi que não era só lama. Era cocô de cachorro misturado com esgoto. Era um líquido preto, fedorento, que me cobria dos pés ao pescoço. Fiquei desesperado. Procurei por Petrúcio e ele estava do meu lado, rindo com todos os dentes. A boca bem aberta, a mão na barriga, o corpo indo para frente e para trás com o movimento dos músculos achando graça.

Uma sensação de queimadura subiu pelo meu rosto e eu identifiquei como raiva. Raiva por aquele lugar sujo, por aquele monte de fezes embaixo de mim, por aquelas pessoas nojentas que estavam ao meu redor e pela audácia de Petrúcio em rir de mim e não me ajudar. Ou melhor, só me ajudar depois de rir até perder a voz. Eu recusei. Recusei sua mão imunda estendida e me levantei sozinho. Disse a ele que o odiava, e era verdade. Disse que tinha nojo da sua casa, e era verdade. Disse que ele era um porco vivendo em um chiqueiro, e era verdade. Disse que iria embora dali e nunca mais teria que ver seus dentes podres, e era verdade.

Quando entrei em casa olhei para trás e Petrúcio estava parado no meio da rua olhando para mim. Não estava mais rindo.

Esse foi o fim da minha amizade de um ano com Petrúcio e nesse relato resumido deixei muitos episódios de fora. São apenas histórias de crianças. Mas uma coisa eu gostaria de corrigir, e de antemão pedir desculpas. Pela mentira, pela maquiagem dos fatos. Na verdade, o garoto da casa rosa sou eu, e o da casa azul chamava-se Jonas. Petrúcio é meu nome verdadeiro porque era o nome do meu pai que fugiu no mundo. Dependendo de com quem me encontro, eu me revelo ou não.

Contei essa história ao contrário porque Jonas nunca me escapou das lembranças, e pensei que tomando emprestado sua consciência eu talvez chegasse finalmente a entender o que se passava em sua cabeça e porque fui tratado não como um amigo de bairro, um vizinho de rua ou um colega de escola, mas como um alvo de seus caprichos. Um objeto da sua falsa generosidade e um alento para sua falta de caridade.

Sim, éramos muito pobres naquela época. Minha mãe sustentava quatro filhos vendendo balas na rua e às vezes passávamos semanas sobrevivendo da sacola de pão que ela ganhava todos os dias. Eu e meus irmãos sabíamos da nossa condição, mas tivemos tão pouco contato com outra realidade que a nossa não era senão o limite do nosso conhecimento sobre o mundo. Quando você não sabe o que tem depois, não sofre pela porta fechada. Éramos felizes com nossas roupas simples, nossos chinelos de dedos e nossas brincadeiras pela rua lamacenta. Diferente de Jonas.

Lembro como se fosse ontem quando ele desembarcou naquela rua, assustado, com medo, e com uma expressão de choro desesperadora. Embora sua condição fosse apenas um pouco melhor que a nossa, víamos como a família rica da rua. E isso talvez tenha sido o nosso, o meu, erro. Dar condições para Jonas se sentir superior. Com o tempo me dei conta como o seu queixo não baixava nenhum grau. E como ele disfarçadamente limpava a mão ao tocar em coisas alheias, e como detestava a comida da escola – uma comida deliciosa, por sinal, ainda mais quando era a minha única refeição mais completa do dia – e como sempre nos lembrava que sua passagem por ali era temporária.

Ainda assim, eu gostava de Jonas. Com ele aprendi coisas que trouxe para a vida toda, como o gosto por super-heróis e pelo xadrez. E sobre isso lembro como era ofensivo perder para mim, enquanto para mim era tudo apenas um jogo.

Tudo que relatei nesta história sob a pele de Petrúcio é uma dedução pessoal minha de seus sentimentos. Foi tirado de minhas lembranças e da minha imaginação. Talvez eu esteja errado sobre tudo, talvez eu tenha interpretado errado suas ações, seus gestos, talvez ele gostasse de morar na minha rua. Mas talvez eu esteja certo. E foi por achar que estava certo que eu me dei a liberdade de rir de sua queda naquele dia. Não por maldade, não para humilhá-lo, mas por permitir aproveitar o único momento em que Jonas se viu em uma situação abaixo de mim, ainda que apenas fisicamente. Ele lá, caído na lama, com toda sua repugnância explodindo, e eu em pé, rindo. Rindo por achar que ele merecia pelo menos uma vez ser alvo de uma chacota inocente de criança, depois de eu ter sido diretamente e indiretamente chacoteado o ano inteiro. Eu iria ajudá-lo, mas por alguns minutos me permiti uma pequena vingança. E não me arrependi, devo confessar. E quando ele disse tudo para me ofender, para me machucar, para se revelar, me arrependi menos ainda. Quando fiquei lá, parado no meio da rua, olhando Jonas entrar em casa com sua roupa fedendo a esgoto, seu pior pesadelo, pensei que poderia ter rido muito mais.

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