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Contos

[Conto] Em outra vida, quando formos gatos

Às sete horas da manhã eu já deveria estar pronto para sair. Normalmente, Tobias me acorda antes disso, mas não dá para culpá-lo agora.

“Tobias! Cadê você, seu gato sem vergonha?” – chamo por ele enquanto calço as meias e os sapatos – “Não está com fome, hein? Será que você morreu?” – fiz piada e imediatamente me assustei ao pensar no meu gato morto.

Ligeiramente frustrado pela ideia de tomar café na padaria em frente ao trabalho – a padaria com seus ovos mexidos cheios de gordura e o pão dormido -, saí em direção à cozinha na esperança de encontrar uma fruta perdida na geladeira e qual não foi minha surpresa ao me deparar com uma tigela cheia de leite e cinco ou seis biscoitos de água e sal boiando dentro. Além de não gostar de leite, eu não sabia que havia biscoitos de água e sal no meu armário. Eu também não sabia como aquele café da manhã – era um café da manhã, não era? – tinha parado ali se eu moro sozinho.

Meu relógio emitia um bip de meia em meia hora e às sete e meia eu já sabia que meu chefe não sairia do escritório até ter certeza que eu compensaria aquela hora de atraso ficando até mais tarde. Disposto a pensar sobre o mistério da tigela depois, apanhei as chaves de casa e saí.

No metrô, pensei em algumas possibilidades: aquele drink com a Teresa pode ter ido além do necessário e nós passamos em uma conveniência e compramos leite e biscoitos. Eu me lembrava do seu “melhor não” ao ser convidada para entrar, mas não me lembrava da conveniência. Antes de elaborar outro cenário plausível, dei-me conta de que não havia encontrado Tobias e muito menos deixei ração e água para o pobre coitado. Tudo errado para uma segunda-feira.

A conversa de duas senhoras atrás de mim me distraiu.

“Está uma confusão dos diabos lá na casa do patrão. Ela não quer mais voltar para casa, disse que não confia mais nele e ele insiste que foi um caso de uma noite. Mas se fosse a primeira! Dona Lily não aguenta mais tantas mentiras”.

“Quem me dera se Bartolomeu tivesse uma companheira. Ele só fica enfurnado naquele quarto. Outro dia, dei de cara com uma saindo do apartamento. Ela era bonita demais, com o pêlo tão macio e limpo… Pena que nunca mais a vi. Ele é muito exigente para um bichano vira-lata qualquer”.

Desisti de entender o diálogo antes que fizesse algum sentido para mim. Uma dor de cabeça começou a surgir e eu vi que o dia seria longo.

Amélia, a secretária com a língua mais comprida do escritório, esboçou um sorrisinho debochado assim que me viu saindo do elevador.

“Você está em maus lençóis, querido”, ela disse, mordendo a tampa da caneta.

“Bom dia, Amélia. Seria ótimo se você não me dirigisse a palavra hoje”.

“Vai logo na sala dele, nem respira”.

A sala do chefe ficava em frente à minha, mas a dele tinha uma porta grossa de madeira e a minha apenas um umbral. Tudo o que eu queria era tomar uma xícara de café na minha mesa enquanto o computador levaria dez minutos para ligar, mas bati na porta do chefe e esperei qualquer coisa acontecer.

“Pode entrar”, uma voz arranhada saiu lá de dentro.

“Perdão pelo atraso, eu…”

“Tenho impressão de que em 45 minutos do seu atraso eu já fiz mais do que você faria o dia inteiro”, a cadeira estava de costas para mim e quando ela girou na minha direção, o meu gato, Tobias, estava sentado nela, com uma expressão não muito amigável. “Às vezes, me pergunto se você quer mesmo esse emprego”, ele uniu as duas patinhas em cima da mesa de vidro e continuou a falar. Ele vestia um terno e falava, o meu gato.

“Amélia!”, eu gritei, sem tirar os olhos dele. “Amélia!”.

Ouvi o barulho do salto fino vindo pelo corredor. Ela me olhou, olhou para o meu gato, e ficou lá parada, como se nada estivesse acontecendo.

“Ele fala”, eu sussurrei, trêmulo.

“Querido…”, ela continuou confusa. “Sr. Tobias, preciso lembrá-lo que às nove horas o senhor tem uma videoconferência com…”, ela passou o dedo pela tela do tablet que carregava nas mãos e Tobias revirou os olhos. Juro que vi o meu gato revirar os olhos.

“Com Thor e Frajola, eu sei. Se vocês fizessem seus trabalhos, eu poderia fazer o meu. Para quê ter uma secretária ?”, resmungou.

“Vem!”, ela me puxou e fechou a porta com o devido cuidado. Eu continuei boquiaberto e atônito.

“Preciso tomar um ar”, eu saí de supetão pela porta da frente e apertei o botão do elevador cinco vezes seguidas. Ao abrir, dei de cara com dois humanos e três gatos, todos eles sobre duas patas, alguns com uma malas pretas e uma gata de salto alto usando uma roupa formal cor de rosa e uma fivela brilhante ao lado da orelha. A única expressão nos humanos era de irritação, por eu ter chamado o elevador e não entrado. A gata de roupa cor de rosa fixou os olhos em mim e apertou um botão qualquer. Ela me olhou com desprezo enquanto a porta fechava.

Sem saber se havia ficado maluco de vez, desci pelas escadas e fui embora. Na rua, notei que muitos veículos levavam gatos no banco do passageiro e que muitos outros felinos dirigiam, sempre um carro bonito e de luxo. E que eles falavam ao telefone, comiam com talheres, davam ordens a garçons e estampavam outdoors pela cidade. 

O único lugar seguro era minha casa, mas quando voltei à ela, a tigela com leite e biscoito me lembrou de aquele foi o primeiro sinal de que o dia estava desequilibrado. Cheguei mais perto e vi um papel dobrado embaixo da louça.

“Não é porque você mora comigo que pode se atrasar para o trabalho. Coma esse café que preparei e chegue o mais rápido possível. E não se esqueça de combinamos uma estadia temporária. A casa é minha e fiz um gesto de caridade com você. Tobias.”

Aparentemente, e sem me dar conta de como isso foi acontecer, eu devia muito mais do que ração e água ao meu gato.

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Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa