Uma vez minha avó me disse: “Se não procurar acordar pra vida, tu vai viver de acender lampião pros outros”. Ela viu numa novela e achou curioso uma pessoa cuja função era sair de poste em poste iluminando a rua. Achou um pouco triste também.
Disse-me isso quando eu tinha lá meus dezesseis anos e voltei da rua entrando sorrateira pela porta da cozinha.
“Cadê tua irmã, hein?”, mamãe perguntou, pegando-me desprevenida.
“Sei não”, menti.
“Não sabe ou não quer dizer?? Eu quero é saber de Marcinha se agarrando com o filho de Tonho. Vocês acham que eu não sei das coisas aqui dentro de casa. Sem vergonhice dessa” – berrou enquanto vinha pisando firme até a porta do quarto – “Cuida, manda ela procurar casa”.
“Eu não sei onde ela tá não, oxe”.
“Pois vai saber já, já. Se Marcinha não tiver aqui dentro de dez minutos vão ficar as duas de castigo”.
Naquela época, minha sina era ser punida pelas traquinagens de Márcia, minha irmã caçula. Admirava-me a coragem que ela tinha em mentir para a nossa mãe, e, mesmo quando descoberta, não perder o fôlego em mentir de novo. Irritada, passei rápido pela minha avó na sala e ela me disse: “Se não procurar acordar pra vida, tu vai viver de acender lampião pros outros”. Quase não ouvi a frase direito, e o que ouvi, não entendi nada.
No começo da rua, havia uma construção abandonada de frente para um poste. Nem escuro o bastante para dar medo, nem claro o suficiente para deixar na vista quem ficava lá dentro. O lugar tinha normas próprias de uso e os adolescentes do bairro se revezavam para alimentar seus namoricos proibidos.
Márcia me disse: “Fica aí na porta me esperando, demoro não. Se tu chegar sozinha em casa, mamãe vai saber”. Nunca eram encontros breves e eu ficava embaixo daquele poste observando as mariposas rodopiando sobre a minha cabeça. Naquele dia, caiu um chuvisco e qualquer pingo de chuva o resfriado era certo, por isso fui para casa. Ainda caía uma garoa fina quando eu voltei e, de frente para os muros quebrados daquela construção velha, gritei:
“Ei, Marcinha! Mamãe tá chamando”.
Ela veio de lá segurando a mão dele.
“Eu te disse pra ficar aí. Mamãe vai brigar demais”.
“Tá chovendo!”, protestei.
“E aí, Paula?”. Dava para perceber o cabelo úmido dele. Achei bonito.
Marcelo foi da minha turma na escola e quando apareceu com o cabelo cortado tudo mudou – as meninas se deram conta de que o nariz grande era um charme e não um defeito. Particularmente, sempre gostei mais do cabelo comprido, mas nunca tive coragem de dizer. Um dia ele apareceu na minha casa para pegar um livro emprestado e perguntou se Marcinha estava por ali. Tudo mudou.
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Minha mãe deu um sermão de meia hora em nós duas, mas Márcia estava apaixonada demais para se importar. Eles se casaram depois do colégio e hoje são donos de um supermercado construído lá em frente àquele poste. Uma vez eu disse a ele que poderia deixar o cabelo crescer de novo e imediatamente me arrependi da ousadia.
Vovó sabia. Vovó morreu sabendo.
Morei fora da cidade durante cinco anos e estava pronta para assumir a gerência de qualquer departamento financeiro que me desse a oportunidade. Durante uma visita em casa, recebi a ligação de uma colega de faculdade.
“Eu tenho umas ideias, mas você sempre foi a melhor, Paula. Vamos montar um negócio bom e apresentar”. Ela falava sobre uma vaga de analista que havia surgido em um banco. Duas semanas de trabalho intenso, um projeto impecável e muita expectativa. Um dia antes, ela ligou chorando. O marido havia ido embora, estava com outra. Dois filhos e um apartamento para pagar sozinha.
“Apresenta você, no seu nome. A vaga é sua”, e eu voltei para passar mais uns dias em casa.
Nesse tempo, minha avó ainda espalhava sua sabedoria para quem quisesse ouvir. Botou uma xícara de café com leite pra mim e me deu um beijo na cabeça.
Edson me chamou para sair depois de duas semanas esbarrando comigo diariamente no elevador do trabalho. Ele ficava no andar de baixo, onde havia uma gráfica. Sempre vestido em tons de azul, quando a porta se abria ele olhava para trás e dava um sorriso ligeiro, encarando-me. Nosso primeiro jantar foi em uma cantina italiana muito charmosa que eu nunca havia ouvido falar, mas descobri que era da família. Fui apresentada à minha futura sogra naquele mesmo dia, uma senhora alta, de voz grossa e firme.
Noivos e já morando na mesma casa, Edson me pediu para adiar o casamento por mais seis meses. E eu, recebendo respostas evasivas, apertei o cerco e recebi como resposta que os negócios iam mal. “Não queria que você soubesse, estou me sentindo incompetente e com vergonha”. Disse a ele que nós seríamos marido e mulher e era inadmissível sofrer sem compartilhar comigo o motivo.
Havia um dinheiro. Dinheiro de uma vida toda. “Toma. Dá para recuperar a gráfica?”. E ele me abraçou apertado, chorando no meu pescoço.
Eu esperava Márcia na porta da loja quando disquei o número dela no celular. “Mas onde é que você está?”
“Estou na sua casa”, sua voz saiu baixa, quase um sussurro.
“Achou a revista? Eu deveria ter tirado uma foto. Traz logo senão vai durar o dia inteiro”. Eu queria um vestido igual ao da Luciana Gimenez.
“Paulinha, vem pra cá, mas vem com calma, tá bom? Já chamei a mamãe”.
Edson levou tudo, dos móveis à minha paz. O andar de baixo, onde ficava a gráfica, por vários meses esteve disponível para aluguel, e ele não deixou para trás um grampo sequer, exceto eu. Soube muito depois que seu filho mais velho é médico e que ele tem um casamento feliz e duradouro.
Aquele dia, eu deveria ter dado meia volta, agachado-me ao lado da minha avó e ouvido com mais atenção. “O que a senhora disse? Pode repetir?”. Ela teria passado as mãos nos meus cabelos e dito: “Não é justo só tu andar no escuro”.
Entre tantas lembranças, percebo também que nem agora, grisalho, Marcelo fica mais bonito de cabelo curto.