Grandes Esperanças é um clássico da literatura mundial e faz parte do meu projeto de releituras em que eu revisito não só o enredo como tento perceber e interpretar melhor as nuances da narrativa, principalmente dos clássicos. Se você ainda não leu essa obra prima de Charles Dickens, neste artigo não há spoilers, mas eu sugiro que você leia primeiro o livro e depois acesse meu texto.
Pip é um menino órfão que vive em uma aldeia com a irmã, uma mulher violenta, e com Joe, seu marido, um homem bastante gentil e amigável.
Um dia, Pip é levado até a casa da sra. Havisham, uma senhora rica da cidade, para brincar. Não sabendo quais brincadeiras seriam essas, Pip sai assustado de casa, pensando no porquê desse convite inusitado, mas a figura com a qual se depara é mais assustadora do que qualquer ideia que ele pudesse imaginar.
Em algum dia de sua vida, a sra. Havisham foi noiva e em algum outro dia, abandonada no altar, episódio que a levou a viver sua mágoa da maneira mais literal e performática possível, qual seja, permanecer vestida de noiva e deixar tudo ao seu redor exatamente do jeito que estava quando foi rejeitada.
“Porém vi que tudo no meu campo de visão que era para ser branco fora branco há muito tempo, e perdera o brilho, e estava desbotado e amarelado. Vi que a noiva com seu vestido de noiva havia fenecido tal como o vestido, e como as flores, que não havia nela nada que brilhasse senão os olhos fundos”.
A intenção da sra. Havisham em deixar tudo intocável era manter, prolongar, a dor o mais viva possível, como que para não se esquecer de que um dia foi vítima. Contudo, na minha percepção, vejo que tanto quanto não esquecer, ela queria também punir alguém pelo que ela viveu. Quem? O ex-noivo? Ela mesma? As pessoas ao redor?
Em primeiro lugar, percebo que quando se coloca em uma situação extravagante, a personagem tenta de certa forma chamar a atenção para si, como se fosse inaceitável viver aquela dor sozinha, trancada em um quarto. Ela quer que as pessoas saibam que ela está naquela casa escura, que ela não superou; quer que a vejam amarga, cruel e desacreditada.
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Em tempos modernos, não seria difícil imaginá-la se expressando no story com músicas e publicações sugestivas sobre sua dor.
“‘Sabes onde ponho a mão, aqui?”, perguntou ela, pondo as mãos, uma sobre a outra, no lado esquerdo do peito.
‘Sei, sim, senhora’.
‘Onde estou pondo a mão?’
‘No seu coração’.
‘Partido!'”
Além de manter suas feridas abertas, a sra. Havisham se empenha em desestimular as pessoas sobre o amor – muito parecida com aquela amiga que está sempre repetindo por aí que nenhum homem presta. Junto com ela, vive Estella, uma menina mais ou menos da idade de Pip, e por quem ele se encanta desde a primeira vez que a vê. A sra. Havisham, por sua vez, desde já estimula Estella a partir o coração de Pip.
“‘[Estela] Por que não choras de novo, criaturinha desgraçada?’
‘Porque nunca mais vou chorar pela senhora’, respondi. O que, creio eu, foi uma mentira deslavada; pois por dentro eu estava chorando por ela naquele exato momento, e sei o que sei da dor que ela me proporcionou depois”.
Outro símbolo da ruína física e psicológica da sra. Havisham é o salão onde um dia seria a festa de casamento. No dia do seu aniversário, ela leva Pip até lá e apresenta a ele um lugar jogado às baratas, aos fungos e aos ratos. O bolo, ainda presente em cima da mesa, é o sinal maior de como alguém pode se deixar consumir e não ter coragem de se desfazer daquilo que lhe faz mal.
“‘Neste dia do ano, muito antes de nasceres, esse monte de podridão’, apontando com a bengala a pilha de teias de aranha na mesa, mas sem tocá-la, ‘foi trazido aqui. Ele e eu decaímos juntos. Os ratos o roeram, e dentes mais afiados que os dos ratos me roeram”.
Penso eu que essa obsessão da Sra. Havisham em permanecer naquele estado – até mesmo os ponteiros dos relógios foram parados na exata hora em que ela foi abandonada – é também uma forma de comodismo sentimental. Por mais saudável que fosse superar a mágoa, seria um passo doloroso a se dar e ela precisaria deixar de se colocar na posição de vítima depois de tantos anos, deixar de pensar sobre o assunto e encarar as pessoas com a cabeça erguida.
Durante uma visita, uma mulher diz a sra. Havisham que ela não está muito bem, e eis que ela responde “Sim! Estou só pele e osso”. Na cena do salão, ela diz a Pip “É aqui que vão me deitar quando eu estiver morta, eles virão aqui me ver”.
Transformar sua vida em um espetáculo é uma maneira de não ter que se esforçar para viver uma realidade diferente. Não é muito distante de quando insistimos em ficar presos a memórias ruins, a episódios humilhantes ou àquela narração aos outros sobre a vez em que fomos injustiçados.
Raiva é um sentimento muito fácil de fazer nascer e de se alimentar, principalmente se podemos espalhá-la, fazendo os demais sentirem repulsa pelo mesmo objeto que sentimos, e dando-nos a falsa sensação de que aqueles pequenos instantes de vingança podem se transformar em uma vitória sobre o provocador de nossas mágoas.
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