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Contos

[ Conto ] Ruído Branco

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― É a maior baboseira que ouvi nos últimos meses — Alan tomou um gole grande de refrigerante e sentiu o bolo de comida descer pela garganta — De tempos em tempos você me aparece com uma dessas.

― Escuta só, eu ainda nem terminei de falar — naquele dia o refeitório estava relativamente silencioso — Eu vi um anúncio online…

― Começa sempre assim. Com um anúncio online. Seu algoritmo deve ser uma porcaria.

― …é um programa imersivo de realidade paralela — Jonas não tinha parado de falar — Ele te leva aonde você quiser.

― Isso já existe.

― Não se trata apenas de realidade virtual. Eles proporcionam uma experiência muito mais completa, profunda, e, o melhor, prolongada no mundo virtual. Cada minuto aqui equivale a uma hora no Olympus.

Olympus — Alan deu a última garfada no talharim — É esse o nome?

― Não importa. Importa que eu posso dormir com cinco mulheres e cada uma ser mais bonita que a outra.

― Por que não namora uma mulher de verdade?

― Eu posso ter quatorze carros de luxos.

― Você não se cansa? Eu juro que me canso de carros.

― Eu posso… você sabe.

― Uma terapia faria mais efeito — Alan passou o guardanapo rapidamente ao redor da boca enquanto se levantava da cadeira — Eu tenho tanta coisa para fazer que não acredito que estou gastando o meu tempo ouvindo você.

― Vamos dar uma passada lá no fim do dia.

― Não lembro a última vez que conseguimos uma folga na sexta à noite e você quer usá-la brincando de videogame. A Úrsula vai me matar.

― É coisa rápida. Vinte minutinhos. Já está agendado.

― E por que você quer que eu vá?

― Porque quando chegar lá você vai se impressionar com o lugar e vai querer experimentar também.

― Sem chance. Por curiosidade: quanto custa isso?

― Seis e quinhentos.

Alan sentou de novo e arregalou os olhos.

― Quando começou a rasgar dinheiro?

― Vale a pena, cara, vai por mim.

No fim do dia, o sol lançava uma luz alaranjada pela avenida movimentada. Entre os semáforos e prédios espelhados, motoristas buzinavam e pedestres apressados e cansados atravessavam na faixa branca antes que o sinal fechasse de novo. Subia um cheiro de fumaça misturado a um cheiro de fritura que Alan nunca sabia de onde vinha, mas que se parecia muito com churros. E a cidade sempre tinha aquele barulho insuportável.

― Olha isso, Jonas — ele parou no meio da calçada — Há quanto tempo você não vê o sol? Deixa esse negócio pra lá e vamos lá em casa. Eu estou tão cansado… Você não teve um dia de cão? Eu tive um dia de cão. A Úrsula aprendeu a cozinhar uns negócios gostosos que ela vai adorar fazer pra gente. Ela gosta de se exibir.

― Depois, depois. Vamos nos atrasar.

Alan deixou os ombros caírem enquanto dava uma última olhada no horizonte.

Os dois eram as mentes mais promissoras da empresa que criava softwares para automóveis. De estagiários com ideias ousadas a líderes prestigiados, os nomes Alan e Jonas eram referência no universo da tecnologia automotiva. Apesar de não serem os primeiros a alcançar sucesso tão jovens, eles gostavam de dizer, em particular, que suas carreiras tiveram a velocidade de uma Bugatti Chiron.

Nada discreta, porém, era a fachada do prédio onde o Olympus estava instalado. A arquitetura moderna e futurista assustou Alan, que parou meio segundo, boquiaberto.

― Eu disse que você iria se impressionar — disse Jonas, empurrando a porta de vidro com certa satisfação na voz.

O salão de entrada era um extenso espaço branco contornado por paredes curvas e um teto com lâmpadas que eram claras demais e pareciam ir revelando o caminho conforme os visitantes avançavam rumo à recepção. Do lado esquerdo, Alan viu alguns sofás odiosamente brancos e uma mesinha de centro que parecia um mouse deformado.

Os dois foram atendidos por uma secretária elegante e sorridente que lhes deu dois crachás e os orientou sobre a próxima parada. Em seguida, entraram em um elevador e subiram para o décimo segundo andar. Jonas estava ansioso e Alan tenso.

Assim que o elevador abriu, ouviu-se uma voz aveludada sair de algum lugar. Seja bem-vindo ao Olympus. Você chegou no Paraíso.

Um homem de cabelos grisalhos os esperava no corredor. Ele se apresentou como Clóvis.

― Serei o guia de vocês nesta experiência. Por aqui, por favor — com uma voz baixa e empolgada, ele apontou para uma porta de vidro mais à frente.

Até então, Alan observava tudo sem dizer uma palavra. Na sala seguinte, um aroma de alecrim deixava o ambiente mais aconchegante, mas não menos impessoal. Tudo ainda tinha a atmosfera de uma sala de cirurgia.

― Podem se sentar, por favor. Não vamos demorar — Clóvis abriu uma gaveta e retirou uma pasta prateada de dentro — Até aqui, o que vocês sabem sobre o Olympus?

Jonas repetiu tudo o que tinha visto no tal anúncio.

― Perfeito — ele sorriu e uns fios de cabelo branco se mexeram — É muito simples, Jonas. Você será direcionado para aquela cabine e eu colocarei dois adesivos nas suas têmporas. É confortável e não incomoda, não se preocupe. Automaticamente, você se sentirá relaxado, como se estivesse pegando no sono. Então é só fechar os olhos e se divertir.

― Eu posso fazer qualquer coisa mesmo? — ele abriu um largo sorriso.

― O programa é direcionado conforme a imaginação do usuário. O seu corpo entra em uma espécie de transe e nada do que você faz no mundo virtual é refletido no mundo real. Para nós, será como se você estivesse tirando um cochilo.

― Tem certeza de que não quer participar? — ele se virou para Alan, mas Alan não se moveu.

― Não tem efeitos colaterais? — Alan perguntou a Clóvis.

― Nenhum. Como eu disse, é um cochilo. Um cochilo no Olimpo — ele esperou que um dos dois dissesse mais alguma coisa — Assine aqui, por favor, Jonas.

A cabine era uma sala comum, revestida de telões com baixa luminosidade, onde no centro havia uma poltrona branca e confortável.

― Quando entrar na sua realidade, verá uns botões de comando no lado direito. Tudo que existe, e tudo que você fará, será ativado pela sua mente. É como mágica, pode acreditar. Os botões servem para desativar o programa antes da hora, caso queira, e para transmitir o que está vivendo para quem está do lado de cá.

― Como assim? — Alan, de braços cruzados, perguntou.

― Algumas pessoas podem trazer convidados para assistir o que estão fazendo e a coisa toda se torna uma espécie de reality show — Clóvis respondeu, com humor — mas vai do gosto do cliente. Dependendo do que ele estiver fazendo do lado de lá, pode ser um entretenimento ou um grande tédio.

― Podemos começar? — interpelou Jonas.

Clóvis o direcionou para a cabine e preparou tudo. Fora da sala, num corredor vazio, Alan sentou-se em um banco de couro de frente para uma janela de vidro por onde poderia assistir ao que o amigo estava fazendo, se assim ele quisesse, mas tudo que viu foram imagens neutras nos telões. Umas ondas verdes que se mexiam vagarosamente.

― Isso quer dizer que ele não quer compartilhar a realidade com você — explicou Clóvis — Não se preocupe, vinte minutos passam rápido para nós. Mas em vinte horas dá pra fazer bastante coisa do lado de lá. Eu estarei logo aqui na minha mesa — e saiu.

― Que baboseira — Alan disse, baixinho, enquanto fitava Jonas esticado em uma poltrona com dois adesivos brancos na testa.

Na semana seguinte, mais uma vez Jonas tentou convencer Alan a visitar o Olympus.

― Você pretende fazer disso uma rotina?

― É incrível, cara! É muito mais legal do que eu pensei. Você não tem ideia das coisas que eu fiz lá. Por horas eu andei num iate de luxo pelas praias da Itália e o meu corpo era igual ao do The Rock. Tem noção disso? Um corpo igual ao do The Rock? — deu uma gargalhada.

― Você está pagando vinte paus por hora para ser o The Rock? — Alan perguntou em tom de absurdo.

― Não, não. Eu acho o meu rosto mais apresentável, permaneci com este mesmo — para Jonas, era uma grande brincadeira de adulto.

A cada sexta-feira, Jonas saía mais cedo do trabalho e ia até o Olympus. Entrou em um plano de fidelidade e aumentou seu tempo de vinte para uma hora e meia a cada semana. Na segunda-feira seguinte, narrava em detalhes para Alan tudo que era possível fazer apenas fechando os olhos para o mundo real.

A rotina de trabalho ficou mais pesada com a demanda de produtos para uma nova linha de carros de luxo prevista para sair dali a dois anos. Alan e Jonas precisavam criar algo que fosse um marco no cenário automotivo. A empresa fechou um contrato milionário e os clientes pediram a exclusividade dos dois. Com isso, o volume de trabalho triplicou. Além da rotina no escritório, eles precisavam atender a jornais e sites que constantemente entravam em contato para entrevistas. E quanto mais atarefado, mais tempo Jonas passava no Olympus.

Certo dia, Alan achou que tudo aquilo estava passando dos limites, principalmente do financeiro. Conforme o programa recebia atualizações e se tornava mais refinado, mais os valores aumentavam por hora contratada. Ele previu que Jonas acabaria gastando sua fortuna em algo que não passava de uma ilusão. Em uma sexta-feira saiu determinado a tirá-lo de lá e nunca mais deixá-lo voltar.

Entrou na recepção irritantemente branca e pediu para falar com Clóvis. Nervoso, subiu até o décimo segundo andar e ao ouvir a voz aveludada anunciando o paraíso, inconscientemente respondeu: “ah, vá para o inferno”.

― Eu vim buscar o Jonas — disse, enfático.

― Ainda falta um bom tempo para ele terminar.

― Não, você não entendeu. Eu vim tirá-lo daqui, ele querendo ou não.

Clóvis ergueu as sobrancelhas. Ele carregava uma espécie de tablet nas mãos.

― Vamos com calma. Por que você mesmo não experimenta e…

― Eu não quero experimentar nada. Eu sei o que vocês estão fazendo, tá bom? Eu sei o que um bom programador é capaz de fazer. Mas o Jonas está procurando uma válvula de escape e nada disso aqui é saudável.

Alan seguiu apressado até a cabine e Clóvis o seguiu. Pronto para entrar e arrancar os adesivos à força, o que Alan viu o surpreendeu. Nos telões, no lugar das ondas digitais, via-se um extenso espaço coberto por uma grama verde sob um céu azul e nenhuma nuvem. Lentamente, a tela mudava para um mar calmo e sem ondas e depois para um horizonte com o sol baixo.

Clóvis olhou para a tela em suas mãos e franziu a testa.

― Isso não deveria estar sendo transmitido. Ele bloqueou todos os recursos de transmissão.

― Como assim? — Alan perguntou, confuso.

― É um bug no sistema. Nós vamos consertar.

― Não estou entendendo. Quer dizer que ele está pagando uma fortuna para andar de iate virtual e está vendo um papel de parede do Windows por horas?

Clóvis respirou fundo e hesitou por alguns segundos antes de responder.

― Muitas pessoas acham que o Olympus é um lugar para você ser quem não pode ser na vida real. Nós vendemos a ideia de liberdade e possibilidades infinitas, mas para ser sincero, isso já existe. Você pode ser quem você quiser no mundo online — ele levantou ligeiramente os ombros — Quem vai te impedir de criar um perfil falso e fingir que é um empresário bem sucedido? Ninguém. Qualquer um pode fazer isso. A maioria das pessoas que vem até aqui, e, principalmente, aquelas que podem pagar, só querem algumas horas de completo sossego. Elas só querem não ter que se preocupar com nada enquanto o mundo continua a correr aqui fora. Elas só querem ficar assim, deitadas na grama e olhando o mar.

Alan olhava incrédulo para as ondas vagarosas no telão.

― Você não imagina o quanto as pessoas são capazes de pagar apenas para conseguirem ficar em profundo silêncio.

Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa