Contos

[Conto] Último dia

Eu estava atrasado quando entrei na sala de reuniões e coloquei, discretamente, a bandeja de sanduíches sobre a mesa, ao lado da torta de frango que eu sabia ter sido feita pela Norma, do setor de Recursos Humanos. Ela era uma senhora que quase sempre vinha trabalhar com o mesmo tipo de roupa: calça jeans, alguma blusa estampada, cabelo preso e sapatilhas. Tinha muitos vídeos dos netos no celular, e eu os assistia com atenção e paciência, pois gostava de receber, às segundas-feiras, um potinho com as sobras do almoço dela de domingo. Por isso, eu reconhecia aquela torta pelo cheiro.

Ela estava do outro lado da sala, empolgada, filmando tudo com o celular na horizontal, torto e instável na mão que não parava quieta. O diretor da empresa falava e eu supus que ele era o primeiro de uma festa que havia acabado de começar. Ao lado dele, Osvaldo mantinha as mãos à frente do corpo e sorria enquanto o chefe o elogiava.

Osvaldo era um funcionário que, após quarenta anos de serviço na empresa, estava se aposentando. Era seu último dia como nosso colega de trabalho, e estávamos todos ali, reunidos, para homenageá-lo e nos despedirmos.

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O diretor discursava sobre a experiência de tê-lo como gerente e braço direito: um sujeito respeitável, íntegro e dedicado, que — segundo ele, bem-humorado — “entrou com os cabelos pretos e saiu com os fios brancos”.

No dia a dia, Osvaldo e eu quase não nos encontrávamos pelos corredores. Às vezes, no horário de almoço, ele se sentava ao meu lado e dizia: “Meu rapaz, se você quiser chegar aonde eu cheguei, precisa saber fazer a coisa certa na hora certa, ou, ao menos, saber a hora certa de fazer alguma coisa.” E eu não compreendia muito bem o que ele queria dizer, até porque sequer havia perguntado. Mas ele sempre saía distribuindo esses conselhos ao pé do ouvido, como se fossem segredos reservados apenas aos grandes mestres.

Um dia, soube que, há muitos anos, ele havia sumido com alguns documentos que o fisco jamais conseguiu localizar. Numa época em que, se não houvesse um papel físico para comprovar algo, então esse algo simplesmente não existia no mundo real. No mês seguinte, ele foi promovido. Ao ouvir isso, compreendi que aquela frase até fazia algum sentido.

Logo em seguida, após o diretor levantar a taça de champanhe e pedir uma salva de palmas, a palavra foi passada a outra pessoa. Norma. Ela respirou fundo, de maneira um tanto dramática, e disse que não sabia por onde começar, já que estava ali havia quase tanto tempo quanto Osvaldo, e os dois tinham muita história para contar. Sua voz embargou, os olhos ficaram úmidos, e ela trocou o celular de mão — Norma havia se esquecido de pausar a gravação, o vídeo mostraria os pés de muitas pessoas — enquanto escolhia as palavras.

Por fim, disse que se lembrava do apoio que havia recebido de Osvaldo e de sua esposa quando enfrentou complicações no primeiro parto e permaneceu acamada por longos dias. “Eles iam lá toda semana, levavam flores, seguravam meu filho por alguns instantes e conversavam comigo. Na solidão daquele hospital, eu sabia que minha família não estava sozinha. Nunca me esquecerei disso.”

Norma também não esqueceria, se soubesse que, naquela época — um tempo em que os direitos trabalhistas das mulheres ainda não eram sólidos —, Osvaldo não hesitou em sugerir sua demissão. Afinal, aquela condição de saúde desfalcaria a empresa, e era preciso pensar por esse lado. A demissão só não ocorreu porque Norma era prima do diretor da época, que preferiu evitar conflitos familiares. Mas, sim, é certo que Osvaldo foi um bom amigo; eu não duvidava do seu companheirismo.

Outro indício de que nosso futuro ex-colega de trabalho era querido e admirável era a quantidade de pessoas presentes naquela sala. Muitos fizeram questão de se despedir, de dar um abraço e de desejar-lhe uma aposentadoria tranquila. Osvaldo sempre cumprimentava todos por onde passava; era gentil e sempre disposto a orientar os novatos. Nunca, no meu breve tempo trabalhando ali, testemunhei grosserias. Mesmo em momentos de crise, Osvaldo sabia agir com parcimônia.

Contudo, burburinhos existem, brotam dos corredores e dos cantos das salas como musgo na fresta de uma parede rachada. Diziam que havia poucos funcionários na empresa a quem Osvaldo nunca havia pedido dinheiro emprestado — e menos ainda a quem ele o havia devolvido. Em outras palavras, a maioria dos colegas tinha alguma quantia a receber, mas nunca a recebia. Exceto eu. Nunca fui abordado com um “poderia dar uma mãozinha a um amigo?”, talvez porque eu não passava dos apertos de mão e dos cumprimentos formais, e jamais respondia quando ele chegava com um de seus conselhos. Nem mesmo agradecia. Fruto da minha timidez, ou do pouco talento para a sociabilidade, a verdade é que acabei escapando de pagar pela simpatia de Osvaldo.

Ainda assim, muitos foram até lá, levaram seus quitutes, deixaram seus depoimentos e contaram causos vividos ao lado de uma figura tão marcante na história da empresa.

Agora era a vez de Susana. Ela trabalhava no setor financeiro e resolvia minhas pendências com muita boa vontade. Era uma moça de vinte e poucos anos, de cabelos escuros e compridos, sempre muito bem maquiada e com as unhas pintadas de vermelho. Todos os homens já haviam tentado alguma aproximação, e eu também tentaria, se tivesse oportunidade. Mas eu conhecia meu lugar, não era cego, tampouco inconveniente. Na última sexta-feira de cada mês, ela recebia um buquê de flores e saía vinte minutos mais cedo para jantar com alguém. Todos sabiam quem era o namorado misterioso, mas só eu o havia visto com meus próprios olhos.

Eles iam com frequência ao restaurante onde meu irmão era garçom e onde, em datas comemorativas, quando o movimento aumentava, eu recebia um extra trabalhando. Em um desses feriados, vi os dois lá: ela, com suas unhas vermelhas; Osvaldo, com seus cabelos grisalhos. Felizmente, não passei pelo constrangimento de servi-los, mas observei o casal durante toda a noite, perguntando-me, por curiosidade, se a família de Osvaldo sabia que ele mantinha uma amante.

Mas, se com a empresa ele tinha quarenta anos de união, no casamento haveria de ter muito mais. E, para se manter unido por tanto tempo, é preciso uma certa dose de condescendência.

Em certo momento, encolhido ali no canto da sala, ansioso pela hora em que serviriam as comidas, ouvi meu nome ser chamado e vi duas dúzias de pessoas voltarem a atenção para mim. Perguntaram se eu gostaria de dizer alguma coisa. Eu? O estagiário? Eu não tinha nada a dizer. Mas, quanto mais rápido falasse, mais rápido me esqueceriam. Então, levantei meu copo de plástico com refrigerante e disse: “Viva Osvaldo! Grande homem.”

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Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa