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Contos

Todos os dias bons

Minha irmã Ellen sempre foi muito organizada. Quando criança, eu não me preocupava em memorizar o dia da aula de Geografia porque ela colava um papel sulfite na porta da geladeira com todos os nossos afazeres. Segunda-feira, aula de inglês, quinta-feira, uniforme de Educação Física, sábado, catequese. Sempre foi um prazer pessoal dela se dedicar a deixar tudo em ordem.

Liguei para Ellen na sexta-feira e perguntei se gostaria de jantar comigo no restaurante novo do bairro, um mexicano com luzes coloridas e música sertaneja. 

– Hoje é dia do futebol do Érico, ele gosta que eu vá.

– Nenhuma esposa vai assistir a essas coisas, não é o dia dele encontrar os amigos e fazer esses programas chatos de homens?

– Mas ele gosta que eu vá, ele diz que eu dou sorte.

– Por favor, tire um fim de semana para ver a sua irmã mais velha, faz tanto tempo que não batemos um papo.

– Amanhã, pode ser? O Érico pode ir? Se bem que ele odeia comida apimentada, mas se pudermos ir em outro lugar…

– Ellen, que tal deixar o Érico um diazinho sozinho em casa? Ele não vai morrer. Problema dele se ele não gosta de comida apimentada, é um bar mexicano que toca sertanejo, nada a ver com México, deve ser divertido.

Ellen deu uma risada do outro lado do telefone.

– Tá bom, tá bom. É que nós ainda estamos..

– Em lua de mel, eu sei. Ô lua de mel demorada, eu só quero ver a minha irmã – falei e ela riu mais uma vez, deixando o nosso jantar combinado.

Ellen e Érico se conheceram na faculdade. Ele estudava Biologia e se interessava por botânica, ela fazia Matemática e se interessava por aritmética. Um dia, voltando para casa, o pneu do nosso carro furou e ele nos ofereceu ajuda. Usava uns óculos quadrados, estava ligeiramente acima do peso e era um sujeito extremamente simpático. Por algumas semanas, os dois se esbarraram nos corredores e trocaram sorrisinhos, ele a convidou para ir ao cinema, ela se apaixonou antes que o filme terminasse. 

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– Como você está? – escolhemos uma mesa não muito perto da dupla sertaneja para evitar o som alto, mas também não muito longe para não desperdiçar o couvert.

– Estou bem, animada com o novo emprego.

– Achei que não gostasse de dar aulas para adolescentes – eu disse, bebericando minha caneca de cerveja.

– O Érico tem mais paciência do que eu, é verdade, mas acho que posso me sair bem. 

– O que tanto incomoda você?

– Nos adolescentes? Eles estão sempre desesperados para chegar na vida adulta. Ficam conversando sobre coisas que não podem fazer, sobre a independência que não tem, sobre a pressão dos pais… tudo isso é nada quando comparado à vida adulta – subitamente, os olhos dela ficaram opacos e distantes, mas em um segundo recuperaram o brilho, ainda que fosse um brilho meio artificial – Mas o Érico me disse que se eu não der corda a irritação será menor.

Eu abaixei o olhar e fiquei em silêncio, tentando deixar a voz dos cantores preencherem o espaço entre mim e minha irmã.

– Sabia que ele vai iniciar uma pesquisa nova agora? – ela se expressou com bastante empolgação.

– Quem? – perguntei, desinteressada.

– O Érico, boba! Finalmente, ele conseguiu aquela bolsa científica que ele tanto queria. É uma pesquisa importante, o nome dele vai sair naquelas revistas que gente inteligente lê. 

– O que acha de viajarmos? Só nós duas – a garçonete deixou dois pratos de nachos no meio da nossa mesa.

– Vão querer algo para sobremesa? – a garçonete perguntou – Posso ir adiantando o pedido.

– Acho que uma torta de limão – sempre foi a nossa sobremesa preferida, de todos os domingos na casa da vovó.  

– Eu odeio torta de limão – Ellen enrijeceu os ombros e eu me desculpei instantaneamente, dispensando a garçonete.

Ellen mastigou o nacho com o semblante nervoso e eu toquei a mão esquerda dela devagar, com cautela.

– O que acha da Itália? Você sempre quis conhecer a Itália. Eu deixo você fazer o roteiro que quiser.

– Acabei de me casar, não tenho dinheiro para ir até a Itália – ela respondeu com a voz seca.

– Deixe comigo, eu consigo o dinheiro e você organiza tudo, metodicamente, como sempre fez. Prometo que não vou reclamar de nada – tentei parecer animada, mas por dentro ainda me sentia culpada pela torta de limão. Eu havia esquecido completamente.

– Preciso ver com o Érico – ela relaxou um pouco e eu mordi os lábios, soltando o ar devagar.

– Tá, tudo bem. 

– Podemos ir? – certa vez, uma garota espalhou pela escola que Ellen fedia a estrume, por conta do nosso pai, que trabalhava em uma fazenda nos arredores da cidade. Um dia, ela saiu correndo da aula, me procurou e disse “Podemos ir?”, com o semblante choroso e as mãozinhas tremendo. Eu fui até lá e dei um soco na garota. Ellen fez aquela mesma cara agora e eu gostaria de dar um soco em Érico, mas eu não podia e nem era culpa dele.

Durante o caminho, tentei conversar sobre amenidades, mas Ellen, monossilábica, olhava as ruas com o olhar vago e ansioso, como se quisesse chegar logo em casa. Antes de ela descer do carro, inventei uma desculpa.

– Seria muito folgado da minha parte pedir aquele seu vestido emprestado de novo?

– Não, eu pego num instante – ela não me convidou para entrar.

– Ellen! Posso usar seu banheiro enquanto você acha o vestido?

– Pode sim – ela respondeu, depois de hesitar por um instante.

Ellen não convidava ninguém para entrar em casa, nem mesmo eu ou nossos pais. Tudo continuava exatamente igual como naquele dia, o par de tênis na soleira da porta, a camisa de time de futebol no braço do sofá, as chaves de casa com o chaveiro de um galho seco. Eu entrei devagar, como se entrasse em uma zona morta.

– O Érico deve ter saído, ele sempre esquece as chaves de casa, não importa o quanto eu peça para ele colocar no mesmo chaveiro da chave do carro – ela foi falando e andando e a voz sumindo dentro dos cômodos – Vou pegar o vestido!

Eu não queria ir a banheiro algum, eu queria ver como minha irmã Ellen, minha pequena Ellen, tão boa com os números e tão confusa com os sentimentos, estava vivendo. Fazia oito meses que Érico havia saído para comprar uma torta de limão na conveniência e ladrões entraram e trocaram tiros com o segurança da loja. Eu continuei andando pela casa e cheguei até a cozinha. Na porta da geladeira havia uma tabela de horários e compromissos. Segunda-feira, Érico, aula do Mestrado; quinta-feira, Érico e Ellen, supermercado; sexta-feira, Érico, futebol. Nós também éramos culpados por aquele quadro ainda existir, por mantermos as fantasias da minha irmã. Ah, Érico… não havia nada que Ellen pedisse que ele não fizesse com muito carinho e boa vontade. Naquele dia, ela queria muito uma torta de limão, como a da nossa avó, ou aquela da loja de conveniências, que também era deliciosa. Ele trocou a camisa de time surrada, esqueceu as chaves, calçou o par de chinelos que estava ao lado do par de tênis e saiu. Não voltou. Quando ligaram para mim, tudo já havia terminado, inclusive o casamento da minha irmã, que havia subido ao altar apenas algumas semanas antes. Estavam naquele clima de lua de mel vivendo o ápice do romance quando o amor da vida dela foi levado por causa de uma torta de limão. Não, não por causa disso, era injusto pensar assim, não se pode saber quando uma coisa dessas vai acontecer. Que burrice a minha ter pedido aquela torta.

Ela voltou com o vestido em mãos.

– Pronto – o humor mudou – O Érico não saiu, ele está no quarto vendo um filme muito ruim. Mandou um beijo para você.

Sem saber o que dizer, dei um abraço muito forte na minha irmã.

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Escritora, jornalista e leitora assídua desde que se conhece por gente. Escreve por achar que a vida na ficção é pra lá de interessante.

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Sabryna Rosa