Estou deitado sobre um colchão desconfortável que não se parece em nada com o meu colchão. Lembro quando a Júlia me mostrou o encarte da loja de móveis e me falou sobre o quanto valia a pena investir em um bom colchão e eu fui categórico em negar, não havia a menor possibilidade de pagar aquele valor em uma cama. Mas quando ela insistiu e me levou até lá para que eu visse com meus próprios olhos, ou melhor, sentisse com meu próprio corpo… ah, tudo mudou. Ela tinha razão, valia a pena comprar um bom colchão, então eu não sei o que estou fazendo deitado neste aqui.
Hoje é sexta-feira e acho que a festa de aniversário do meu sogro é hoje. Há dias a Júlia não fala em outra coisa e ela anda muito irritada com os preparativos, o que me faz lembrar que eu preciso pegar de volta a caixa de ferramentas que emprestei para o meu cunhado, certamente irei precisar dela mais tarde. Mas bem que o próprio Rogério podia ele mesmo usar as ferramentas para ajudar a organizar a festa do pai. Sujeitinho folgado, viu? Sempre foi assim, sempre esparramado pela casa dos outros enquanto a Júlia cuida de tudo. Uma santa. Se bem que ele é o único palmeirense por ali e é bom ter um parente que torce para o Palmeiras. Vou convidá-lo para ver o jogo de domingo lá em casa.
Não consigo achar meu celular, não consigo achar nem os bolsos da minha calça, as luzes estão muito fortes. Eu não estou de ressaca, estou? Que dor de cabeça! Eu sabia que aquele vinho barato não ia me fazer bem. A Júlia tem estômago mais forte do que eu, aposto como dormiu bem e acordou melhor ainda. Preciso ligar para ela e dizer que a loja de descartáveis ainda estava fechada e que no horário do almoço eu dou um pulo lá e compro o que estiver faltando. Mas era só o que me faltava, ter perdido o celular…
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Quando eu era jovem, queria ser médico. O meu pai é médico e muito apaixonado pela profissão. Mudei de ideia no último ano da escola, quando descobri que era bom em fazer as pessoas comprarem o que eu estivesse vendendo. Hoje eu vendo carros e vendo muito bem! Meu pai ficou um pouco decepcionado, mas sempre que precisa trocar de carro, me procura e fazemos bons negócios juntos. Eu quase posso dizer que consigo ouvir a voz dele agora em algum lugar por aqui.
Certa vez, eu me perdi no supermercado. Era véspera de Natal e nós tínhamos ido comprar um pacote de uvas passas porque meu pai adorava e a minha mãe esquecia de comprar de propósito. Então quase todo ano lá íamos nós enfrentar grandes filas por um punhado de uvas passas. Naquele dia, eu o perdi de vista e comecei a chorar, aflito por não saber onde ele estava, por não saber onde era a saída e muito menos como voltar para casa. Eu já podia me ver em um orfanato de outra cidade sem pai e sem mãe. Uns bons minutos depois eu ouvi a voz do meu pai chamando por mim – como eu estou ouvindo agora – uma voz ofegante, desesperada, clamando para não me perder.
Na loja onde eu trabalho sou o funcionário mais dedicado e não tenho modéstia nenhuma em reconhecer isso. Ainda estamos na metade do mês e eu já bati a meta do bimestre, o que vai me render um bom bônus. Prometi a Júlia que faríamos nossa primeira viagem para o exterior neste ano. Ela pensa muito em conhecer o Egito e eu só preciso me interessar por alguns dias por múmias, hieróglifos e pirâmides para vê-la feliz. Combinamos que desta vez o Egito, da próxima a savana africana. Ah, eu adoro os bichos, a Júlia sempre precisa esperar o episódio de algum documentário terminar para mudar o canal da televisão.
Não entendo, mas estou cansado. Não consigo mais ouvir a voz do meu pai, agora só ouço vozes abafadas e muitas mãos sobre mim. Se eu fecho os olhos, vejo a escuridão, mas se os mantenho abertos também não está tudo tão claro como antes. Alguém espetou alguma coisa em mim e estou úmido ao redor do colchão. Eu queria o meu colchão de volta, o colchão caro que a Júlia me fez comprar. Precisar buscar as ferramentas, hoje é o aniversário do meu sogro, meu pai gosta muito de uvas passas, o Rogério é palmeirense e a Júlia quer conhecer o Egito. Eu queria só ligar a TV e assistir a alguma coisa sobre bichos, mas estou terrivelmente cansado.
Hora do óbito, oito e meia.
Mas eu me sinto vivo.