Reparação já começa apresentando Briony e seu gosto por alimentar a mente fértil com fantasias. Aos treze anos, ela gosta de escrever romances e peças de teatro, mas reconhece que lhe falta “aquele vital conhecimento do mundo”.
Também no primeiro capítulo a narrativa aponta uma determinada característica em Briony, o fato de que ela não tinha maldade e que gostava de ver o mundo em ordem, sem destruição.
E onde tudo isso entra na história?
Naquele verão dos anos 30, a família Tallis se prepara para receber o filho mais velho, Leon, o amigo Paul, e os sobrinhos Lola e seus irmãos gêmeos, Pierrot e Jackson, para um fim de semana. Cecília, a filha do meio, já está na casa, e Briony, a caçula, trabalha em uma pequena peça de teatro que gostaria de apresentar aos convidados na noite do jantar. Robbie, o filho da empregada e quase membro da família, também está entre os participantes.
No meio da noite, um crime sexual acontece e Robbie é acusado por uma testemunha ocular: Briony. A partir daí, muitas são as consequências dessa acusação, uma vez que Robbie é preso ainda na mesma noite.
A vaidade de Briony
O livro é dividido em quatro partes.
Na primeira parte, a história dá o protagonismo a Briony, colocando-a como o olho que tudo vê e dando a ela o privilégio da palavra. Ela é quem assiste de longe à cena do vaso caindo na fonte; ela quem flagra Cecília e Robbie na biblioteca; ela quem testemunha o estupro de Lola.
Quando o evento catastrófico acontece (ela acusar Robbie de ter estuprado a prima Lola), eu vejo que Briony se deixou levar por uma motivação bastante infantil de ser a heroína da história, como se, frustrada pela impossibilidade de ser a protagonista da peça que estava ensaiando, ela quisesse agarrar uma oportunidade de fazer a diferença no mundo real, no mundo dos adultos.
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Ainda impactada pelo flagrante de Robbie e Cecília na biblioteca – um evento consensual e não uma violência -, Briony constrói uma imagem de vilão em cima de Robbie, um vilão bastante caricato, com traços de psicopatia e crueldade. E é com essa imagem na cabeça, e com um desejo de proteger as pessoas do “mal”, que ela afirma com todas as letras que Robbie é o agressor de Lola, muito embora ela não tenha visto com clareza e nem a própria Lola possa dar essa certeza.
Agora, tudo isso acontece em um dia em que Briony declara a si mesma que a partir dali não é mais criança, que os contos de fadas ficaram para trás e agora ela lida com problemas de adulto. Mas foi justamente a responsabilidade e a maturidade de um adulto que lhe faltaram quando foi necessário que ela analisasse a situação com clareza.
É certo que talvez um adulto de verdade cometesse o mesmo erro, mas talvez não pelas mesmas motivações. A própria Lola, a vítima, com um pouco mais de idade, se reservou a dizer que não viu direito, enquanto Briony sente uma necessidade quase irresistível de estar certa porque quer ser relevante, porque quer fazer justiça, porque quer ser a protagonista daquela história, porque não quer ser taxada de criança boba e voltar atrás.
“Briony caiu numa arapuca armada por ela própria, penetrou num labirinto construído por suas próprias mãos, e era jovem demais, estava impressionada demais, excessivamente sequiosa de agradar aos outros, para insistir numa retratação”.
A reação de Robbie
Na segunda parte, Robbie está na guerra. Depois de três anos preso, ele aceita servir porque é melhor do que estar na prisão. É uma parte bem longa (inclusive no filme), onde ele tenta sobreviver para reencontrar Cecília enquanto atravessa o país com as cartas dela no bolso. Ele nutre um rancor de Briony do qual não faz nenhum esforço para se livrar.
“Não era razoável nem justo odiar Briony, mas ajudava”.
A autopunição de Briony
Na fase seguinte, vemos Briony já ali com seus dezoito anos, servindo na guerra como enfermeira de um hospital. Ela carrega a culpa do que fez e de certa forma tenta usar aquele trabalho como penitência. Um trabalho difícil, braçal e sangrento, como se ela quisesse achar algo mais cruel e feio para se sobressair ao seu passado.
Ainda nessa mesma fase, Briony procura Cecília (elas se separaram desde o episódio do jantar) e a encontra em uma cidadezinha aos arredores de Londres ao lado de Robbie. Os dois a tratam com repulsa, mas o medo de Briony de que eles nunca mais se encontrassem é aliviado. Ela sai dali com a promessa de retratar seu depoimento e, quem sabe, retirar a condenação de Robbie – que ainda cumpria pena, estando apenas cedido para o Exército.
A Reparação
Atenção, spoiler!
Porém, na quarta e última parte nos deparamos com Briony com 77 anos de idade, já no final dos anos 90, contando em primeira pessoa que a terceira parte dessa história só é verdade em partes. Ela nunca procurou Cecília e Cecília nunca reencontrou Robbie. Ambos morreram na guerra e Briony se sentiu no dever de reparar, ainda que ficcionalmente, uma história que não terminou feliz por interferência sua.
O desejo de ser uma escritora se concretizou e ela fez carreira na profissão, trabalhando a vida inteira em um romance no qual o casal apaixonado vive seu amor, já que na vida real isso não foi possível.
Um caminho sem volta
Eu vejo que na transição de uma fase para outra há não só um amadurecimento dos personagens como um endurecimento das personalidades deles. O livro começa num dia quente, ensolarado, porque tudo está bem e animado. Cinco anos depois, Robbie é um homem castigado, Cecília alimenta amargura pela família e Briony se consome de remorso enquanto fecha feridas em carne viva dos soldados. Tudo ficou mais duro para todo mundo.
A narrativa também lança uma pergunta: Até onde é possível usar a imaturidade (ou a pouca idade) como justificativa para determinadas ações?
“Você acha que eu ataquei sua prima?” “Não.” “E achava na época?” […] “Sim, sim e não. Eu não tinha certeza.” “E por que é que você tem tanta certeza agora?” […] “Porque cresci.”
Dá pra culpar Briony por ter sido irresponsável se ela, por natureza, era uma menina fantasiosa? Se ela queria ser notada, queria ser importante naquele episódio? O quanto de solidez dá pra exigir de alguém com treze anos de idade?
“[…] não agira movida por malícia. Mas quem acreditaria nisso?”
De minha parte, opino que acusar Robbie foi um crime, mas pior ainda foi ter sido covarde e passar a vida inteira se remoendo em vez de fazer algo a respeito.
“A culpa refinava os métodos de tortura que ela se infligia, enfiando uma a uma as contas dos detalhes num fio eterno, um rosário que ela passaria o resto da vida dedilhando”.
Outro ponto a se destacar é que assim como testemunhar Robbie estuprando Lola foi coisa da sua cabeça, a Reparação também foi. O final feliz só existe ali, no mundo que Briony criou para não encarar a realidade. Embora no fim do livro ela diga que devia isso a eles, eu vejo que foi algo feito mais para si mesma do que qualquer outra coisa. Por que, afinal, que diferença faz?
“A resposta é simples: o casal apaixonado está vivo e feliz. Enquanto restar uma única cópia, um único exemplar datilografado de minha versão final, então minha irmã espontânea e fortuita e seu príncipe médico haverão de sobreviver no amor”.
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